EXCURSOS DO MEU FILOSOFAR TELÚRICO (I): Comida e filosofia como degustação de três pratos típicos, à base do milho, na culinária tradicional cabo-verdiana (cachupa, papa, camoca).
“… a Cachupa (sopa de milho) não é mais usada por esses vagabundos, o milho come-se cru, já não há paciência para o cozinhar, o que provoca uma dilatação do estômago, devido à fermentação.”
(Luís Romano, Famintos, 1983, p. 23)
“Antónia de Laura, de pau de pilão na mão, de manhã cedo e à tardinha, batia, batia, preparando xerém, papas, fongos, brinholas, cuscuz torrado […] De balaio de tentém a apurar a farinha…”
(Teobaldo Virgínio, O Meu Tio Jonas, 1993, p. 51)
“– Que ninguém nos venha perturbar inadvertidamente, pretendendo que ninguém tem desejo […] de comida que não seja de qualidade. Porque, na verdade, toda a gente tem desejo do que é bom”.
(Platão, A República, 438a)
Senhores e senhoras, com as três citações em epígrafe, peço-vos licença para fazer algumas divagações filosóficas com os pés bem no chão e a cabeça fito na comida, pão nosso de cada dia. Vou filosofar um pouco sobre os tramas do mundo do comum dos mortais, “mundo sensível”, como o denominou Platão.
Começo os meus excursos dizendo que, num plemanhã log cidin, acordei-me com o estômago descabelado. Pensando na comida, veio, instintivamente, a ideia de preparar uma cachupa meme (cachupa c’se, sem ‘pão’) para o almoço, e com ela poder ‘tapar’ o enorme buraco que tinha aberto no estômago. De onde me veio essa lebzia meu Deus! Estou com “bicho-carpinteiro”? Será?!
Subitamente, perdi a fome, assim como, a vontade de comer cachupa c’se. E, em tom baixinho, murmurando, disse com os meus botões: ah qual história, almoçarei papa q’bobra!
Jantarei camoca d’pedra d’rala e pera desafogar a goela e desempedrar o estômago, nada melhor do que um chá d’cana pzód ne plon. Em todo o caso, hoje é Domingo! Então, p’ra quê infrontá por causa d’comida?
Uma hora e meia depois, tive uma intuição e, ante ao impulso incontrolável de pegar em lápis e papel, meus fiéis instrumentos no trabalho de “história e memória”, segurei, primeiro, esse modesto e dócil carvão, a seguir, uma folha reciclável de teste sumativo apanhado entre o montão de papeis que costumo guardar em casa, e, assim, comecei a escrevinhar algumas ideias que me foram, através de um insight, aparecendo, mercê, Luís Romano, Teobaldo Virgínio e Platão, todos, meus escudeiros, citados em epígrafe. Seduzido pelos três, movido pela vontade de saber e pelo meu recente êxtase pela escrita sobre coisas da terra, aventurei-me, numa digressão filosófica sobre o assunto comida, um tema inédito no lado de cá. Mas, digressão filosófica sobre comida? Filosofia e comida? Como assim?!
Sim, comida e filosofia! É isso que leram! Mas atenção! Comida e filosofia só depois de “barriga cheia”, porque como se diz aqui na ilha “sóc bezi n’de pô impê”! E sendo verdade, então, vamos encher o bucho primeiro, porque o almoço já está pronto e sobre a mesa. E já sabem, ê papa q’bobra! Convido a todos a gastarem sua parte dess pôq ’nom mi chega…
De barriga cheia, lancei-me, de seguida, na projeção do meu empreendimento. Ao começar, senti, como é óbvio, necessidade de uma base filosófica por onde devia colocar as primeiras pedras do meu "filosofar telúrico". Repito, meu filosofar telúrico! Essa base se deve ao fato de que nenhum pensamento filosófico, por mais original que seja, “cai do céu”, digamos que não é um fiat lux ex nihilo. Aprendi isso com os meus mestres, aos quais deve muito, parte das minhas habilidades e competências desenvolvidas na área de investigação filosófica. E com base nesse pressuposto, diria que todo o esforço empregue no ato do filosofar tem de estar ligado a algum antecedente. Afinal de contas, a historicidade é caraterístico do saber filosófico.
A priori, com esse desiderato, comecei a revolver entre os meus arquivos digitais acedidos vi@ net, possíveis referências que, eventualmente, podiam me ajudar no desenvolvimento desse tema. Eis que me surge, depois de alguma procura, e quando menos esperava, uma obra da autoria de Angelina Nascimento (2007), com o título Comida: Prazeres, Gozos e Transgressões[i]. Estou falando de uma referênci@ (e-book) que tinha guard@do num dispositivo de armazen@mento de d@dos, em uma p@sta com o nome v@rios.philos e o ficheiro Antrop@sofia[ii].
Comecei a revoltear esse livro e, mais ou menos, em meio do caminho, parei num tópico com a denominação «Comida e Filosofa». Assim sendo, disse com os meus botões: caso resolvido, acertei em cheio… eureka!!
Foi bastante rápida a leitura desse tópico. O seu esboço, feito em menos de uma página. Nela, deparei-me com uma ligeira citação a partir de um empréstimo feito em um filósofo francês da atualidade, um ‘cinquentão’, de nome Michel Onfrey[iii]. Segue, em baixo, o seu registo:
Quando um filósofo fala de música ou pintura, continua sendo respeitado. Mas eu escrevo sobre comida e vinhos, que estão ligados ao olfato e ao paladar, sentidos considerados menos nobres pela nossa cultura. Luto para que a filosofia passe a encarar o corpo por inteiro”. (Nascimento, 2007, p. 108)
No filósofo Michel Onfrey reside la maître en quete desse tema proposto em meu projeto "excursos do meu filosofar telúrico". Como diz ele é preciso “lutar para que a filosofia passe a encarar o corpo por inteiro”. Mas, é bom que se diga que isto só é possível se, e só se, aderir às estratégias da “reforma” e “pluridimensionalidade” do pensamento (Morin, 2006). A meu ver, um pensamento que não separa, mas une. Une os diferentes saberes, sem pôr a tónica nos seus valores, resultados práticos e direções. Une o sensível com o inteligível, em vez de os dividir e distinguir, como fez Platão no seu tempo. Portanto, mercê Onfrey e Morin, é possível relacionar comida e filosofia. Outrossim, comida e outros saberes auxiliares à filosofia, tais como: arte, ciência (ciências sociais e humanas), política, religião, etc.
Na análise das relações entre comida e arte, é possível cruzar a culinária tradicional cabo-verdiana à base do milho com certas formas de expressão de arte, exemplo, literatura e pintura. Só a título ilustrativo, no campo da produção literária, encontramos um escólio sobre cachupa redigido por Baltazar Lopes, quem teve a coragem de beliscar nesse tema, através de um artigo intitulado “A Cachupa Nossa Quotidiana”, texto redigido em Fevereiro de 1983, e publicado no primeiro número da revista Ponto & Vírgula.
Ainda no campo da literatura de ficção podemos destacar obras de vulto como “Os Famintos” de Luís Romano (1983), um escritor já falecido, ilustre filho de Santo Antão, cuja obra é, a meu ver, uma ode (repito, UMA ODE!) aos tempos dramáticos de seca cíclica e prolongada em Cabo Verde e que foram responsáveis pela dizimação de boa parte da população da ilha de Santo Antão e outras ilhas irmãs, em tempos idos, bem visíveis no terreno através da carestia de comida para alimentar a bocas eslazeiradas destas ilhas. Como diz Romano (1983) naquela época qualquer camarada (sobre)vivente, “esperando a morte do moribundo, era capaz de o mergulhar dedos na goela não para lhe evitar a asfixia, mas para lhe retirar o bocado entalado na garganta e engoli-lo num fechar de olhos” (p. 23).
(Fotografia da Ilha de Santo Antão em tempos de fome, década de 40. Um aspeto de como grande parte da população vivia no interior da ilha, em 1940 e depois em 1942 e anos seguintes a seca prolongada foi responsável por uma das maiores catástrofes demográficas da história de Cabo Verde. Imagem acedida online em: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/03/guine-6374-p9675-meu-pai-meu-velho-meu.html)
Igualmente, no capítulo da arte em sua relação com a culinária destacam-se, no campo da pintura, algumas telas de Kiki Lima que, em meu entender, com os seus “ligeiros traços e poli cromatismos” de uma pintura “mimética” e "expressiva" da cultura cabo-verdiana (arte como imitação e expressão), retrata mulheres no pilão, a ventilar milho, fazendo cachupa na lenha e atiçando o lume no fogão de três pedras suportando o cadeirão, todas no seu esforço de representação da parte mais saborosa do ciclo de transformação do milho: a preparação e confeção da cachupa, nossa quotidiana...
Com Kiki Lima, podemos identificar alguns motes de estudo sobre a relações arte e comida (pintura e cachupa). Nesse pintor existem muitos aspetos que podem ser explorados a esse respeito. Diria eu, aspetos que dariam para desenvolver trabalhos e mais trabalhos de investigação. Então, para os filósofos da arte, que tal a sugestão de uma monografia sob o título Comida e Arte em Kiki Lima: um apontamento estético sobre pintura e cachupa, nossa quotidiana?
Hoje, quem não esta acompanhando continuamente as atualizações do saber filosófico, tampouco se “põe a par” dos reajustes que nele se vai fazendo, por causa das necessidades, invenções, exigências e desafios culturais dos novos tempos, pode achar um absurdo virmos à ribalta propor divagações a volta do tema comida e filosofia. Até, os mais incautos, podem dizer que é trote, já se chegou ao cúmulo da loucura e do ridículo por causa da filosofia, que filosofia nos arribou à cabeça, ou, quem sabe, dizerem com as suas próprias bocas, pensando com a cabeça dos outros, que estamos passando por uma fase de lebzia (falta de comida, fome!).
Vendo bem as coisas nesta última direção, até digo que é falta de comida sim! Mas, não é falta de comida no “bucho”. É na cabeça, isto é, uma espécie de lebzia de conhecimento, o que já é muito bom! E para saciar essa fome, de momento, nada melhor que divagar, filosofar sobre comida.
Se bem que o nosso pai, avô, bisavô, tetravô… Aristóteles já havia dito que “O filósofo é aquele que possui a totalidade do saber na medida do possível”. E para conseguir almejar esse saber total, geral, há que filosofar sobre tudo. Contudo, a expressão “tudo” que aqui se emprega pode estar armadilhado. Filosofar sobre tudo, quer dizer todas as coisas, mas não significa qualquer coisa! E mesmo que seja filosofar sobre qualquer coisa, essa coisa qualquer tem de nos interessar e interessar a todos. Então, comida não interessa a todos? Quem não come? Quem não sente fome? Quem não degusta o que é bom de comer?
Corroborando o argumento de Aristóteles, citaria outro filósofo, Buno Giuliani (2002) para dizer que filosofar é “procurar os princípios da natureza visível e invisível, é interrogar-se sobre a natureza da ‘substância’ […] de que são feitas todas as coisas materiais ou espirituais, a partir da experiência humana” (p. 125).
Baseando em Giuliani (200), afirmo que com essas divagações procura-se “os princípios da natureza visível”, interrogando sobre a “natureza da substância” de que são feitas algumas “coisas materiais” no campo da culinária tradicional cabo-verdiana. Culinária, um "saber-fazer" edificado a partir da experiência sensorial, em todos e com todos os sentidos, isto é, graças às sensações e aos órgãos sensoriais.
Ainda "atiço o lume" dizendo que, com estas divagações, estou filosofando “espigando milho” em solo cabo-verdiano, na nossa terra! Não é uma "pseudo-mania" minha, mas uma intuição que me permite, a partir de algumas experiências sensoriais vivenciadas como humano que sou, tecer relações entre o que se come e o que se pensa, numa tentativa de desenvolver uma atitude filosófica inovadora, isto é, um “filosofar como degustação”, passe as expressões do nosso já citado Onfrey. E isto implica erigir uma filosofia a partir do paladar conjugado com o olfato, a visão e todos os outros sentidos juntos, em concorrência com a razão, fonte do "filosofar como indagação".
Já se referiu que o foco central dessas divagações filosóficas sobre a comida, está em três pratos típicos da culinária tradicional cabo-verdiana confecionados à base do milho, concretamente, a cachupa, a papa e a camoca, comidas boas mencionadas no início do texto e que fazem parte do complexo da cozinha nacional, consolidado, há muito tempo, desde a era colonial, como afirmam os estudiosos da nossa história.
Passando agora, sem mais delongas, à “degustação” do almoço que, por perda de apetite e má vontade, não quis confecionar nesse dia, começo por dizer, à parte a história, que a cachupa é, sem dúvida, um dos mais caraterísticos pratos da culinária tradicional cabo-verdiana, se não, o alimento básico de toda a população de Cabo Verde e, por isso, reflete, praticamente, a paisagem, a riqueza e a cultura do nosso povo. Entre os vários preparados do milho, ela erigiu-se como soberana e incontestada nos gostos dos cabo-verdianos (os de cá e os lá, os dentro ou fora).
Existem três maneiras diferentes de a confecionar: cachupa rica, cachupa pobre ou de “agua e sal” e cachupa com peixe. Grosso modo, na cachupa “entram como ingredientes milho cochido (retirado o farelo), feijão, mandioca, batata vulgar e doce, hortaliças, chouriço, carnes variadas, abóbora, inhame, variedade de elementos que nas classes mais pobres se vêem reduzidos, muitas vezes, apenas a milho feijão, água e sal…” (Filho 1997, p. 198)
Para degustar melhor a cachupa diria, suportado em Agostinho Rocha, que em Santo Antão, este prato é "predilecto, faz-se desfarelando o milho no pilão de cochir ou batchir o milho, significando cochir, bater no coche ou no pilão de batchir, bater, importado do batcher de certos falares brasileiros” (p. 55).
Batchido o milho, em seguida era-lhe retirado o farelo no balaio de tem-tem e levado a cozer na caldeira de fazer cachupa. Adicionava-se-lhe ervilha, feijão pedra ou feijão pavão, corruptela de fava, e depois de secar duas ou três águas, deitava-se-lhe o pão de caldeira, constituído por mandioca, inhame, banana verde, abóbora, batata doce ou batata inglesa, mas, antes de levar o pão já tinha levado carne, toucinho, peixe ou galinha, couve, agriões ou mostarda em folhas.
No fim era temperado com pimenta, cravo, malagueta, tudo pilado no pratinho de pisar tempero que era uma escudela de figueira, deitava-se o sal com uma colher para ver se estava no ponto ou se este tinha salgado a comida. Já se podia tirar o rico caldo de cachupa.
Às vezes quando havia alguém com vontade de comer, antes de jantar dava-lhe cachupa ‘sepulcada’, isto é, salpicada. A cachupa era levada à mesa em terrinas, travessas, pratos de folha ou pratos de figueira, conforme a categoria das pessoas, sendo o ‘pão’ e a carne servidos noutros pratos. Deixava-se uma parte de cachupa ou micochido para o ‘pão’ de café do dia seguinte, ou seja, para o pequeno almoço, aí as seis ou sete horas de manhã. Depois de guisada era servida com peixe frito ou carne assada, ovos cozidos, quentes, ou escalfados, ovos de tartaruga, chouriço, linguiça, fruta, morcela, paio ou peixe assado nas brasas, batata doce assada, mandioca assada na brasa ou feita como a batata ou também podia ser cozida e seguia-se para trabalho até a hora do almoço. […]
Quando a cachupa não trazia pão ou ingredientes, diziam que comiam a cachupa ‘merme’ e que era só cachupa «c’se». (Rocha, 1990, p. 55-56)
De facto, verifica-se que a culinária cabo-verdiana é feita de engenho e a partir, principalmente, do milho, reafirmo, o pão "nosso de cada dia”, em sua relação com o pilão e outras máquinas arcaicas de "pedra e pau". Excetuando os tempos de falta de milho em Cabo Verde, desse alimento não se comia só o farelo, o qual, em tempos de fartura, era administrado como ração para “alimárias” (porcos, cabras, galinhas, etc.).
Sobre o uso deste utensílio doméstico e sua importância no ciclo de transformação do milho, escreve Teobaldo Virgínio (1996) em seu Cabo Verde – Parágrafos do meu Afecto: “É o pilão um dos ecos mais profundos da sociedade caboverdiana de sempre” (p. 63). Atesta Virgínio que o pilão,
Terá surgido com o cultivo do milho nos recuados tempos do povoamento, da reminescência de experiências anteriores, ou já transportados nos barcos dos mercadores da Costa de África e do Brasil.
O pilão é toda uma cultura. Na casa do pobre, na do remediado, na do rico. Do tronco de figueira brava, em princípio, e mais tarde do da mangueira, quando a figueira já morria, é instrmento que não requer tratos de arte não obstante um outro mais apurado pelas mãos de artistas com gosto.
Com um abertura em funil num dos extremos do tronco, aí de metro e pouco, uma espécie de colar recortado a vinte centímetros da base, mais dois paus de laranjeira (os martelos) temos o conjunto dessa máquina primitiva ainda presente nas nossas ilhas.
O pilão assim visto não sugere muita coisa. Mas quem de manhãzinha o ouvisse em actividade, dar-se-ia conta de um engenho com coração, alma e cor. Aqui há tudo: flores, madrigais, contraditas, desafios, amores, cuscus, xerém, cahupa, fongos, papas, brinholas num quadro crioulo que nenhuma outra criação pode dar.
Há pilões de todas as dimensões: o pilãozinho de pilar café, o de moer sal, outro mais pequenino de esmagar malagueta, o alho, o cravo e ainda outro mais acabado da facturação do cancan, tratado do pó de tabaco com o cheirinho de várias essências.
Mas o pilão, o pilãozinho, é o rei da festa Aquele que mais chora quando a nuvem enxuga os olhos. Tinha que ser assim. Um povo de vida centrada na cintura desse velho-pau-amigo como lhe daria vida sem milho, sem emoção das águas de encharcar potes, meladores, canaviais, ladeiras da flor do milho?
Pilão da melhor cachupa que comemos na infância feitas pelos presos do tempo de Nhô Antoninho Leite, carcereiro, na Ponta do Sol. Aqui eram quatro a sei homens a pilar o milho. Qualquer coisa como o ritmo do batuque ou tambores de S. João.
Musculosos presos no trato do seu pão. Cuchiam, esfarelavam, cuzinhavam, temperavam o melhor prato regional que o delegado de Portugal, por dever de ofício e prazer, ia experimentar todas as tardinhas. À esquerda a horta dos legumes que engordavam o prato.
Cadeia de Nhô António Leite, famosa cadeia do pilão, lugar de visitas e cavaco, dos porcos desmesuradamente gordos do farelo de quartas de milho. E ficava no apetite o gostinho a friginato que viria depois.
Cadeia de Nhô Antoninho Leite, de piladores de pequenos azares (fora o milho), os presos que não passavam do quotidiano do pilão e da cachupa a tempero também do ilhéu e da albacora do mar da Ponta do Sol. […]
Pilão, velho amigo da terra sem chuva! (Virgínio, 1996, pp. 63-64)
Ainda, com esta “primitiva máquina”, o pilão, se pode reduzir o milho a partículas menores que são transformadas em farinha grossa, média ou fina. Contudo, esta farinha, pode ser obtida com outras "máquinas primitivas" feitas de pedra. Por exemplo, o moedor de mão, isto é, a famosa “pedra de rala” da minha meninice na zona onde nasci e que me fez homem, sito num regato onde íamos apoquentar as menininhas as espiando perboch aquelas que não traziam cuecas. A «pedra d'rala», também chamada "mó de rebolo" ou "vaivém" é, assim como o pilão (de pedra e pau), uma "primitiva máquina". E lá já ia me esquecendo da "mó volante", outro utensílio com a mesma função, também feito de pedra!
Com a farinha de milho se fazia papa. Outrora adicionava-se abobora à essa boa comida, sendo servida ao almoço, acompanhada, sobretudo, com leite de cabra fresco. Costumava-se guardá-la de um dia para o outro e servi-la ao pequeno almoço em fatias ou frita (Filho, 1997, p. 201). Com a boa papa q'bobra tive excelente almoço e tapei o enorme buraco que tinha aberto no estômago! Valeu a pena, pá!!
Agora o meu jantar! Estou falando da camoca, um prato que se come, ainda hoje, com leite e açúcar, café, chá e, também, em forma bolinhos, cujo nome agora passou-me. Ajudem-me a trazê-lo dos confins da memória. Por favor, socoooorro!
A camoca é feita a partir dos grãos de milho torrado (prentém, como se chama qui em Santo Antão) e esmagados no pilão, na mó ou no rebolo (pedra d’rala) até se transformar numa farinha bem fina que é depurada no balaio de tem-tem, geralmente por mulheres como aquela tal "Antónia de Laura… De balaio de tentém a apurar a farinha…” (Virgínio, 1993).
Na verdade, tudo o que é bom, toda gente tem vontade de o comer. Então, que ninguém nos venha perturbar, inadvertidamente, pretendendo dizer que não têm desejo de comer cachupa, papa ou camoca porque não são comida boa, isto é, prato de má qualidade.
Antes de terminar a degustação filosófica dos três partos da culinária típica cabo-verdiana à base do milho, considera-se que, aos lhos do nosso povo, cachupa, papa e camoca são nada mais que três “pratos desconstruídos” que protegem o “espírito do milho”, empregam e preservam ou mesmo reforçam a intensidade do sabor desse alimento. Milho é a substância, um produto da terra, base dos principais pratos tradicionais do nosso complexo culinário, que apresentam uma combinação de textura completamente transformada e diferenciada. Digamos, pratos que são milho que deixou de ser milho para passar a ser cachupa, papa, camoca... cada um com a sua textura, sabor próprio, tempo de preparação (confeção). Ao fim ao cabo é, em simultâneo, milho vário e singular! Milho sepulcado (salpicado), bem cozido, torrado… assado, é milho diverso, múltiplo! Cru, é milho uno, único, altivo e soberano. Milho, sempre milho, e milho, e milho, e milho... igual a si próprio. Nas nossas cozinhas, nos nossos pratos, no nosso estômago. Mas, antes passado no pilão, na pedra d'rala ou na mó. Assim, termino minhas divagações com uma frase de oiro, citando um ancião com o qual aprendi muito, sobre milho, na infância, em tempos de sementeira em pó: "Óh muêr, mi ê quê govérr d'um casa"!
Bibliografia e Referências
Giuliani, B. (2002). O Amor da Sabedoria – Iniciação à Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget.
Lima, K. (2003). Kiki Lima. Lisboa: Caminho. pp. 25-34.
Lopes, B. (1983). A Cachupa Nossa Quotidiana. Ponto & Vírgula, 1. pp. 3-6.
Morin, E. (2003). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand.
Nascimento, A. B. (2007). Comida: Prazeres, Gozos e Transgressões. Salvador: EDUFBA.
Platão. (2007). A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Rocha, A. (1990). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão (1462/1983). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.
Romano, L. (1983). Famintos. Lisboa: Ulmeiro.
Virgínio, T. (1993). O Meu Tio Jonas. Boston: Novela Caboverdiana.
Virgínio, T. (1996). Cabo Verde – Parágrafos do meu Afecto. Boston: Ruben Melo.
Notas de fim
[i] Eis o link de acesso o livro: https://www.passeidireto.com/arquivo/5203744/comida--prazeres-gozos-e-transgressoes
[ii] Neste parágrafo, o uso predominante do símbolo @ é para indicar a natureza da fonte documental consultada. Fonte em formato digital, acedido, via net.
[iii] Para conhecer melhor este filósofo, consultar o link: https://fr.wikipedia.org/wiki/Michel_Onfray
2 comentários - EXCURSOS DO MEU FILOSOFAR TELÚRICO (I): Comida e filosofia como degustação de três pratos típicos, à base do milho, na culinária tradicional cabo-verdiana (cachupa, papa, camoca).
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(1) feitiços de amor de todos os tipos. (2) pare o divórcio. (3) acabe com a esterilidade.