UM APENSO DE OUTROS TRILHOS DE HISTÓRIA DA ILHA DE SANTO ANTÃO QUE ACRESCENTAM VALOR AOS EXCURSOS DO MEU FILOSOFAR TELÚRICO (I): Pedras que falam pela idade e são capazes de nos provocar água na boca.
"Boas histórias, ques pedras tem dod gente uns camuquinhas de quel bom, la na terrer e ne Fajã, graças a eterna Didita e Maria Senhorinha, e sem falar na um Papa de rolon e uns banana de Fongo que nos la na casa ene dava gosta mut…"
(face@miga Bety Fortes)
“Papa d mi rolod, inda més se for k bóbra, k lete d'cabra ê deliciosooo!”
(face@miga Marlene da Graça)
“Mim jam kme cold de pes ke papa de mi rolom el e um omor se bzot en seb pergunta kes gent mes entig”.
(face@migo Antero Monteiro)
C@ros leitores,
Começo este artigo citando em epígrafe parte de comentários de três @migos meus, feitos a volta de um "post" que publiquei na "face", onde escrevi algumas "coisas" sobre as minhas memórias e vivências da infância com histórias da pedra d’rala, um utensílio doméstico (público e privado) outrora utilizado como ferramenta na moagem do milho em Santo Antão e outras ilhas do arquipélago, cuja remanescência de alguns exemplares ainda existe na minha localidade - Ribeira da Torre.
Com esta primitiva máquina de "pedra sobre pedra" produzia-se a farinha de milho a partir da qual se confeciona a famosa papa d’mi rolom, um prato típico da culinária tradicional cabo-verdiana, chamado pelos mais velhos da minha comunidade "qentiga d'rotcha ê quê te ne morada". Pois, era, o milho, em muitos casos, o pão nosso de cada dia, o único alimento presente em todos os lares, seja no campo ou na cidade. Contudo, houve tempos em que por causa da falta do milho, isto é, durante os períodos mais difíceis marcados pelas secas e fomes cíclicas, os santantonenses "Para comer, descobrem [entre tantas coisas como sola de sapato, tronco de bananeira...] raízes de árvores que esporadicamente aparecem, sustentando-se disso e saciando a sede com o pequeno suco também extraído das raízes" (Fernandes, 1998, p. 30 grifo meu).
Para conhecer melhor a génese dos utensílios de pedra que viriam mais tarde evoluir para a nossa famosa pedra d'rala, temos de nos "ancorar no porto seguro" da história da civilização ocidental e "mergulhar nas águas profundas" do passado da humanidade. E ciente desta condição, tomaria como referencial teórico o historiador Edward McNall Burns (s.d., p. 18) para dizer que a história humana inteira pode ser dividida em dois períodos, a "Idade da Pedra" e a "Idade dos Metais". A primeira é às vezes denominada "Idade Pré-Literária", ou seja, o período anterior à invenção da escrita. A segunda coincide com o "período da história" baseada em "registos escritos". E pelo que atesta o autor supramencionado,
A Idade Pré-Literária cobre pelo menos 95 por cento da existência humana e não termina senão nas proximidades do ano 3000 a.C. A Idade dos Metais é praticamente sinónima da história das nações civilizadas. A Idade da Pedra subdivide-se em Paleolítico (antiga idade da pedra) e Neolítico (nova idade da pedra). Cada uma delas recebe o nome do tipo de armas e utensílios de pedra caracteristicamente fabricados durante o período. Assim, durante a maior parte do Paleolítico era comum afeiçoar os instrumentos retirando lascas de uma pederneira ou outra pedra e conservando o núcleo restante, que se usava como "machado manual". Na fase terminal do período, eram as próprias lascas que se usavam como facas ou pontas de lança, rejeitando-se o núcleo. O Neolítico viu os instrumentos de pedra lascada ceder o passo aos instrumentos feitos de pedra desgastada pelo atrito e polidas. (Burns, s.d., p. 18)
Assim dotado da capacidade de raciocínio, que o diferenciou desde logo dos primatas, o homem já na "Idade Pré-Literária", iniciou uma viagem pela invenção tecnológica que demonstrou a sua habilidade de utilizar os elementos que a Natureza lhe oferecia, dos quais se destaca a pedra, em seu próprio benefício. O uso da pedra que acompanhou a evolução do homem se traduziu, durante a época paleolítica, na produção de utensílios em pedra lascada, destinados a cortar, raspar, partir, furar, entre várias outras funções.
Imagem 1 - Ilustração de um homem primitivo desnudo agachado à beira de um rio segurando em cada mão lascas grandes de pedregulhos, como se estivesse pronto a desgasta-las. Fonte: http://iriscordemelad.blogspot.com/2016_05_01_archive.html
Na verdade, para o homem primitivo eram bons tempos aqueles quando as pedras estavam lascadas porque a invenção da pedra lascada "abriu novos caminhos para a sobrevivência da espécie" (Rodrigues, p. 28). Vejamos o exemplar que segue em baixo:
Imagem 2 - Ferramenta de corte de Olduvai, utensílio encontrado na garganta de Olduvai, Tanzânia 1,8-2 Milhões de Anos. Fonte: Neil MacGregor (2013). A História do Mundo em 100 Objetos. Rio de Janeiro: Intrínseca. p. 34.
Segundo MacGregor (2013, p. 34) esta ferramenta em pedra lascada, encontrada na Tanzânia (Leste da África) foi o "começo de tudo" porque é a "origem da caixa de ferramentas". Mas, esta pedra lascada não é uma ferramenta qualquer porque marca o momento em que nos tornamos distintamente mais espertos, movidos por um impulso não só de fazer coisas, mas também de imaginar como “melhorar” as coisas. Aquelas lascas extras no gume da ferramenta de corte revelam que, desde o início, nós – ao contrário de outros animais – sentimos o desejo de fazer coisas mais sofisticadas do que o necessário. Objetos transmitem poderosas mensagens sobre quem os produz, e a ferramenta de corte é o começo de uma relação entre os seres humanos e as coisas que criaram, o que é tanto um caso de amor quanto uma dependência. A partir do momento em que nossos ancestrais começaram a fabricar ferramentas como esta, ficou impossível para as pessoas sobreviver sem os objetos que produzem; nesse sentido, fabricar coisas é o que nos torna humanos. As descobertas relacionadas com esta ferramenta na Tanzânia, tiveram como resultado mais do que simplesmente obrigar os humanos a recuar no tempo: deixaram claro que todos nós descendemos desses ancestrais africanos e que cada um de nós é parte de uma gigantesca diáspora africana – " todos trazemos a África no DNA e todas as nossas culturas começaram ali", mais concretamente na Tanzânia (Leste da África).
Imagem 3 - Mapa de África onde vemos sinalizado , no pormenor ao lado, a garganta Olduvai na Tanzânia (Leste de África). Fonte: http://www.historialia.com/detalle/57/homo-habilis-garganta-olduvai-tanzania
O arqueólogo David Attenborough citado em MacGregor (2013) assevera que este utensílio talhado em pedra lascada e encontrado na garganta de Olduvai, na Tanzânia, há aproximadamente 1,8-2 Milhões de Anos,
... está na base de um processo que se tornou quase obsessivo entre os seres humanos. É algo criado a partir de uma substância natural com um propósito específico, e, de certa maneira, quem fez o objeto tinha uma noção de por que precisava dele. É mais complexo do que o necessário para desempenhar a função na qual foi usado? Acho que se pode quase dizer que sim. Ele precisava mesmo tirar uma, duas, três, quatro, cinco lascas de um lado e três do outro? Não bastariam duas? Acho que sim. Acho que o homem ou a mulher que segurou isto o fez apenas para um trabalho específico e talvez sentisse alguma satisfação em saber que aquilo cumpriria sua tarefa com grande eficácia, economia e ordem. Com o passar do tempo, se poderia dizer que ele passou a fazê-lo de forma primorosa, mas talvez ainda não. Era o começo de uma jornada. (Attenborough ap. Macgregor, 2013, p. 36)
O percurso dessa jornada, como já vimos no princípio deste artigo, tem como último estágio o período Neolítico, também denominado por "nova idade da pedra". Esta denominação porque os objetos de pedra utilizados como ferramentas passaram a ser feitos pelo método do polimento, mediante o atrito, ao invés da fratura e separação de lascas, como se fazia no estágio anterior. Pensamos que a ferramenta na imagem em baixo é esclarecedora.
Imagem 4 - Machadinha de Olduvai Ferramenta encontrada na garganta de Olduvai, Tanzânia (Leste da África), há 1,2-1,4 Milhões de Anos. Fonte: Neil MacGregor (2013). A História do Mundo em 100 Objetos. Rio de Janeiro: Intrínseca. p. 39.
Esta machadinha é bem diferente das ferramentas de corte produzidas a partir das lascas de pedra do Paleolítico, porque não é um objeto simples de produzir. É resultado de experiência, planejamento cuidadoso e habilidade adquirida e refinada durante um longo período. Esta ferramenta de pedra polida é:
Tão importante para a nossa história quanto a grande destreza manual necessária para fazer este instrumento de corte é o salto conceptual exigido: a capacidade de imaginar num bruto bloco de pedra a forma que se quer produzir, assim como o escultor de hoje vê a estátua que aguarda dentro do bloco de pedra. Este particular pedaço de suprema pedra high-tech [...] veio de uma camada geológica mais recente do que a ferramenta de corte, feita centenas de milhares de anos antes, e há um imenso salto entre aqueles primeiros utensílios de pedra e esta machadinha. É aqui que encontramos as origens reais dos humanos modernos. Nós reconheceríamos alguém igual a nós em quem a fez. (MacGregor, 2013, p. 40)
Esta ferramenta é prova de que o Neolítico viu os instrumentos de pedra lascada ceder o passo aos instrumentos feitos de pedra desgastada pelo atrito e polidas. Sobre os avanços tecnológicos desse estágio assinala-se que:
A muitos respeitos, a nova idade da pedra foi a era mais importante na história do mundo até então. O nível do progresso material atingiu novas alturas. O homem neolítico exercia maior domínio sobre o meio do que qualquer dos seus predecessores. Tinha menos probabilidades de perecer devido a uma mudança das condições climáticas ou porque viesse a falhar uma parte dos seus recursos alimentares. Essa decisiva vantagem resultou, sobretudo, do desenvolvimento da agricultura. Enquanto todos os homens que viveram anteriormente eram coletores, o homem neolítico era produtor de alimentos. (Burns, S.d., p. 29)
Ainda, com a descoberta da agricultura também nesse estágio o homem iniciou um novo processo de produção de utensílios, assim como o processo de transformação do seus alimentos. Passou a utilizar mais tipos de pedras, como o sílex e o polimento, como nova técnica de produção. Como essas novas atividades requeriam novos utensílios, surgiram, neste contexto, instrumentos mais capazes e adaptados a novas práticas, como a lâmina para as foices de corte, a enxó de pedra para cultivar a terra e os moinhos manuais para moagem dos cereais.
Assim, conhece-se, desse tempo a “mó de rebolo” ou “mó de vaivém”, constituída por duas pedras (mós), uma dormente (pouso) e outra movente (volante). Como o próprio nome deixa transparecer, o movimento de rebolo e vaivém da movente ou volante sobre o cereal (milho e outros grãos) que se encontrava na mó dormente ou pouso, transformava-o num novo produto, a farinha, que para ser obtida, ele passou a triturar os grãos com duas pedras lisas, uma maior e fixa; outra menor e móvel, a qual foi-se aperfeiçoando aos poucos.
Estava-se na pré-história da agricultura e era este o processo usado no Egito e o resto do "Crescente Fértil" (território que se estende das planícies aluviais do Nilo, continuando pela margem leste do Mediterrâneo, em torno do norte do deserto sírio e através da Península Arábica e da Mesopotâmia, até o Golfo Pérsico) há muitos milhares de anos.
Imagem 5 - Estatueta egípcia da dinastia III fazendo a representação de uma mulher nas lides domésticas da moagem de cerais utilizando a mó de rebolo, um exemplar africano arcaizante da pedra d'rala. Fonte: Morgan (1896). Recherches sur les origines de l'Egipte. Paris: s/ed. p. 144.
Se é coerente afirmar que a ferramenta de pedra lascada encontrada em Olduvai é o "começo de tudo" e a "origem da caixa de ferramentas" e que, igualmente, a machadinha, também de Olduvai, reflete a "capacidade de imaginação" do homem (Macgregor, 2013), não é mera retórica nossa dizer, citando as palavras do eclético (historiador, filólogo, teólogo, filósofo, escritor…) francês, Joseph Ernest Renan (1823-1892), que “Um mundo sem ciência é escravatura, o mundo fazendo girar a mó, submetido à matéria, equiparando à besta de carga". Portanto, a invenção da mó de rebolo é o começo de uma nova arte e técnica (ciência) que veio libertar o homem do cansaço desse trabalho árduo e fastidioso de transformação dos grãos...
Mó, mais concretamente, um moedor de pedra de origem neolítica, constituído por duas pedras sobrepostas, é denominado “mó de rebolo” ou “mó de vaivém” e vulgo, nestas bandas (ilha de Santo Antão), como já dissemos, “pedra d’rala”. Trata-se de um utensílio doméstico acionado diretamente à mão por mulheres e homens desta ilha na moagem do milho (cru ou torrado) para fazer farinha ou camoca, como se pode ver na foto em baixo.
Imagem 6 - Uma jovem mulher de Santo Antão (Tarrafal de Monte Trigo) moendo milho na pedra d'rala, onde ao lado vê a bandeja, outro utensílio doméstico tradicional usado nesta ilha durante o ciclo de transformação do milho. Fonte: www.mindelo.info
Sobre o formato e a história dessa primitiva máquina de pedra em solo cabo-verdiano, escreveu o antropólogo cabo-verdiano João Lopes Filho (1997) em seu Corpo e Pão – o vestuário e o regime alimentar cabo-verdianos, o seguinte:
“Consta de uma laje larga e um tanto côncava, sobre a qual espalham o milho para ser triturado por uma outra padra de formato ovalóide, num movimento de vaivém sobre a primeira (tanto uma como a outra terão de ser pedras rijas). Trata-se de um instrumento pré-histórico destinado a esmigalhar ou moer os grãos e […] é […] muito mais primitivo, de tipo das mais antigas mós neolíticas, que entre nós se encontra ainda no espólio arcaizante de alguns castros não romanizados, mas na África Ocidental, continua em uso em alguns lugares, como testemunha o facto de ela ter sido encontrada entre os Bochimanes de Angola onde, «para triturar frutos e sementes, alguns grupos utilizam igualmente uma pedra achatada a servir de mó de rebolo». Alguns autores sustentam, ainda, que este utensílio teria sido introduzido em Cabo Verde a partir das Canárias, onde já existia” (pp. 217-218).
Imagem 7 - Imagem (Desenho) de duas pedras pré-romanas sobrepostas em forma de mó de rebolo (cavado) existente no Museu Etnológico de Portugal. Esboço feito pelo Desenhador F. Valença.
Contudo, uma fonte primária acedida online, nos dá conta que já "os antepassados dos portugueses empregavam pedras" desse tipo ou quase parecidas com a nossa pedra d'rala, como se pode ver na imagem 7. De acordo como o autor desta fonte, essa ferramenta era utilizada na "moagem de cereais ou outras substâncias que servissem para o fabrico de pães e bolos". E crendo na autenticidade dessa fonte, então é pouco provável que o costume do uso da pedra d’rala tenha sido introduzido em Cabo Verde, a partir das ilhas Canárias como deixam transparecer os autores lidos por João Lopes Filho (1997).
Em Santo antão é muito mais provável que a sua introdução, tenha sido feita nos primórdios da fixação do homem no espaço desta ilha. Estou falando de homens como os portugueses e afro-negros, mais concretamente, os algarvios e os escravos já "ladinizados" ou mesmo libertos, importados pelos colonizadores a partir de Santiago para trabalharem na atividade agrícola, a contar, mais concretamente, a partir do século XVII, um tempo histórico extremamente jovem para a idade muito recuada dessa pedra, um utensílio neolítico (pré-história).
Imagem 8 - Fotografia feita por mim à Nhá Titina de Sérgio e sua pedra d'rala na Zona de Cruz de Cima, no Alto da Ribeira da Torre - Novembro de 2016
Quanto às suas localizações no vale da Ribeira da Torre, fiz um pequeno levantamento, tendo contabilizado, só num pequeno périplo às zonas circum-adjacentes ao Top d'Mranda, a majestosa torre de pedra que é a nossa imagem de marca, como se pode ver pela trajetória tracejado à vermelho, do alto da Penha de França à zona de Ladeirinha, 10 pedras d'rala: Penha de França (duas); Selada de Ribeirinha de Jorge (três); Varzinha (uma); Cabouco de Polingrina (uma); Cruz de Cima (uma) e Ladeirinha (duas). As confiram na imagem que se segue em baixo.
Imagem 9 - Imagem do Vale da Ribeira da Torre e sua imponente Top d'Mranda em cuja volta ainda encontramos alguns exemplares inoperacionais da pedra d'rala (exceto a pedra da imagem 6). Fonte: Manuel Nascimento, em http://asemana.sapo.cv/spip.php?article83031 (Adaptado)
Quantas pedras d'rala em tantas outras ribeiras e lombos (zonas rurais) dos três concelhos da nossa a ilha, podemos ainda encontrar? Crê-se que várias! E se tivéssemos que fazer um levantamento e respetivas sinalizações das mesmas, andando a ilha de Santo Antão de lés a lés, iriamos encontra-las aos montes e, de certeza, constatar, in loco, que algumas delas até agora se operam, ou seja, as pessoas mais antigas ainda conservam o costume do seu uso para moerem prentém (milho torrado) e produzirem a famosa camoca de milho avermelhado oriundo da Argentina, milho este chamado lá para as bandas de Altomira por "mi d'Jon" ou em Ponta do Sol por "mi d'Mria Russa", mas na minha localidade (Ribeirinha de Jorge) por "mi sénguinha". Olhem que este cereal torrado e moído dá "um cmuquinha" de fazer água na boca! Outrossim, dizem que se administrado como ramed d'terra contribui para a cura da anemia...
Imagem 10 - Foto feito por mim ao Martim de Ti Xiquinha simulando ralar milho na pedra d'rala pertencente à sua falcida mãe, no Lombo da Penha de França, Ribeirinha de Jorge, Ribeira da Torre - Novembro de 2016
Havia outrora várias protótipos de pedra d'rala nesta ilha e dizem que os seus usos eram frequentes, por se tratar de uma ilha essencialmente agrícola e onde o milho era a principal cultura e a base da dieta do povo, quer no campo ou na cidade. Em tempos de carestia de comida devido as secas e fomes, o seu uso era mais intenso. O motivo é que as pessoas não tendo mais nada que comer a não ser milho que dera à praia mercê aos encalhamentos de alguns navios estrangeiros nas nossas encostas, por exemplo Maria Cristina, vulgo ‘Maria Russa’ (encalhado na Ponta do Sol, 1919) e John Schmeltzer encalhado na Praia Formosa, 1947). Abrindo um curto parêntese sobre esses dois fatos históricos locais, para confirmar a veracidade das suas ocorrências, lê-se em Fernandes (1998) o seguinte:
Aos 17 de Março de 1919, por volta das 11 horas da manhã, foi encalhada na Baixo do Cavalo para uns, Baixinho de Nha Mri Juninha para outros, aproximadamente a um quilómetro de distância donde se situava o antigo farol da Ponta do Sol, o navio cargueiro "Maria Cristina" chamado 'Maria Russa' pelos solpontenses, nome que ficou conhecido na história de Santo Antão. [...] «Maria Russa» estava carregado de milho e vinha da Argentina para a Grécia. Poucos dias depois era a 'móia'... Durante quase três dezenas de anos, o barco passou a ser «o pão nosso de cada dia» para muito boa gente (ponto de ração para a caldeira dos mais pobres) [...].
Era nos anos mil novecentos e quarenta e sete, a vinte e cinco de Novembro, quando o navio John Schmeltzer de nacionalidade americana (carregado de mantimentos como milho, sêmeas e sementes de girassol, provenientes da América do Sul) se afundou. Ao passar por Cabo Verde, necessariamente na zona de Barlavento, uma forte bruma dificultou a navegação, tendo o barco encalhado no sitio da 'Canjana' lá para os lados da Praia Formosa, Ilha de Santo Antão. Foi assim que a procissão de pessoas de todas os cantos da Ilha ia chegando, noite e dia. Muita gente se safou da fome. Mas muitas pessoas morreram ao se atirar ao mar sem saber nada, tentando recolher esses produtos. A informação que se tinha era a de que dos restos mortais, só vinham à superfície porções de fezes, sinal evidente do seu trágico desaparecimento. Houve situações em que homens recebiam dos familiares, um binde de 'cuscus,' para conduzirem o corpo ao cemitério. Às vezes, os homens nem tinham paciência de esperar que o moribundo cerrasse os olhos, arrefecesse e fosse compensado. Casos houve, em que a pessoa quando atirada para cova adentro, exclamava: «inda mene merre!». (Fernandes, 1998, pp. 25-31)
Segundo relatos de quem viveu ou conviveu com pessoas que viveram nos tempos em que havia só milho para comer nesta ilha, muita gente se levantava de cama por volta das três da madrugada para porem na fila e aguardar, ansiosamente, pela sua vez de fazer moagem do seu milho na pedra d'rala e produzir farinha para, antes de partirem para as jornadas de trabalho de manhãzinha, poderem confecionar o teu tacho de papa d’mi rolon, o seu único matar d'injun disponível. Contudo, houve tempos em o milho era engolido inchado ou cru, porque "fome n'dem lei".
Imagem 11 - Foto feito por mim ao Tio Djunga e a pedra d'rala que ainda existe na casa do nosso ascendente paterno (Bisavô e Avô) Manuel Zacarias Monteiro, na zona de Selada de Ribeirinha de Jorge, Ribeira da Torre - Novembro de 2016
Hoje, é com muita pena que não vemos a prática do uso da pedra d’rala no quintal ou terreiro de cada casa nas ribeiras ou povoados rurais da nossa ilha. Quanto ao seu uso pelos mais jovens, entre eles, aqueles que a conhecem, fazem a sua recusa. Outrossim, os jovens que a desconhecem por completo, sequer ousam perguntar sobre a sua história e investigar qual o seu valor cultural, quanto mais agora investir na aprendizagem do seu manuseio junto das pessoas mais idosas! É esse o tipo de 'gente' (filhos, sobrinhos, netos...) que estamos preparando para enfrentar o amanhã...
Contudo, peço minhas sinceras desculpas aqueles jovens que não se incluem nesse role, porque sei que ainda existem alguns deles (as relíquias entre a nova geração) que realmente sabem o gosto do "ralar" e "rolar" com o vaivém nas mãos do destino sobre o pouso das oportunidades do dia-a-dia e que a vida lhes dá, para poderem comer, por dia, um único prato de papa d'mi rolon, porque as suas famílias passam necessidades e em casa dos pais não têm quase nada que comer.
Imagem 12 - Exemplares de pequenos sacos de farinha de milho importados do Brasil. Fonte: http://sinhaalimentos.com.br
Mas p'ra quê toda essa maçada que implica levantar de cama de madrugada, meus caros jovens, para moer na pedra d'rala e fazer farinha de milho, se ela já vem todo pronto do exterior, empacotada, em saquinhos de plástico, rotulados com marca diversa, preço e logo com a Dona IVA incluído. Mas, antes que me esqueço, diria que Dona IVA não! Mas, Senhor IVA porque estamos falando de "O" imposto... coisa que os linguistas discutiriam e esclareceriam melhor do que "certos" políticos da nossa Ágora.
Quanto a compra desses saquinhos de farinha de milho, basta ter dinheiro no bolso para mandar vir qualquer um, ao gosto, necessidade e preferência do freguês, entrando numa loja a retalho ao dobrar de um dos becos da Povoação (Cidade da Ribeira Grande) ou em qualquer ribeira. Porém, não havendo farinha de milho moído na pedra d'rala, desse milho geneticamente modificado, rotulado e em saquinhos de plástico, eu preferiria a Sinhá Fina porque moda gent entig tava dzê, "sberba n'dem bonq pê sentá" e já não tenho "pança" com a capacidade suficiente de suportar a Sinhá Média, quanto mais a Grossa?!
Fontes:
Livros
Burns, E. MC. (s.d.). História da Civilização Ocidental - Vol. I. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Globo. S.d.
Fernandes, M. P. R. M. (1998). Os Contos da Paula. Mindelo: Gráfica do Mindelo.
Filho, J. L. (1997). O Corpo e o Pão - O Vestuário e o Regime Alimentar Cabo-verdianos. Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras.
Ki-Zerbo, J. (2010). História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: Unesco.
Macgregor, N. (2013). A História do Mundo em 100 Objetos. Rio de Janeiro: Intrínseca.
Rocha, A. (1990). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão (1462/1983). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.
Rosicler, M. R. (s.d). O Homem na Pré-História. S.l: Editora Moderna. S.d.
Links
http://asemana.sapo.cv/spip.php?article83031
http://iriscordemelad.blogspot.com/2016_05_01_archive.html
http://www.historialia.com/detalle/57/homo-habilis-garganta-olduvai-tanzania
https://pt.wikipedia.org/wiki/Crescente_F%C3%A9rtil
https://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_da_Pedra
https://pt.wikipedia.org/wiki/Neol%C3%ADtico
Na minha zona, por exemplo, antigamente, haviam várias pedras do tipo e o seu uso era frequente. Eram usadas para triturar prentém do qual se fazia a famosa camoca de milho, "mi rolon" (farinha de milho não muito fina) para fazer "papa k'bobra" e outras COMESTÍVEIS à base do milho, "o pão nosso de cada dia", antigamente.
Hoje não existe uma pedra dessas, naqueles sítios onde existiam antigamente, para poder servir de memória e assim contar a história aos que não sabem. Bons tempos, mas infelizmente...
Na minha zona, por exemplo, antigamente, haviam várias pedras do tipo e o seu uso era frequente. Eram usadas para triturar prentém do qual se fazia a famosa camoca de milho, "mi rolon" (farinha de milho não muito fina) para fazer "papa k'bobra" e outras COMESTÍVEIS à base do milho, "o pão nosso de cada dia", antigamente.
Hoje não existe uma pedra dessas, naqueles sítios onde existiam antigamente, para poder servir de memóri
(1) feitiços de amor de todos os tipos. (2) pare o divórcio. (3) acabe com a esterilidade.