OUTROS TRILHOS DE HISTÓRIA DA ILHA DE SANTO ANTÃO (I): Preâmbulo
Como já tivemos oportunidade de afirmar, um dos principais objetivos do uso desta "ferramenta web 2.0" é divulgar trabalhos de pesquisa e reflexões pessoais (artigos) sobre temas das diferentes áreas disciplinares das ciências sociais e humanas, mais concretamente, história, filosofia e pedagogia ou ciências da educação.
Com relação a estas três áreas do saber, é na última, isto é, na história, onde enquadramos todos os artigos que pretendemos produzir no âmbito do longo desenvolvimento dos vários temas integrados num primeiro projeto de investigação sem formalidades académicas, que se designará doravante por «Outros Trilhos de História da Ilha de Santo Antão».
Mas, os outros trilhos de história da ilha de santo Antão que pretendemos percorrer, são o reverso daquilo que J. Alvares Pereira (1988), um investigador autodidata português sobre questões de história local e regional portuguesa, ousou denominar por “história dos grandes feitos que todos contam” (p. 29).
Contrariamente a esta tendência da história, o nosso trabalho histórico vai de encontro a uma outra tendência. A tendência que faz da história um estudo dos pequenos feitos contados por uns poucos. Trata-se de uma história sobre os pequenos lugares, tendo a cultura como campo de estudo. Daí o seu enquadramento no campo da "história cultural".
História cultural é um novo caminho da história por onde queremos passar, traçando, assim, um novo rumo à história, um rumo que segundo a autora brasileira S. J. Pesavento (s.d., p. 66) nos permite explorar como “temas e objetos" elementos simbólicos como " ritos e festas, mitos e crenças, sociabilidades e atitudes mentais ou mesmo a incorporação da história material pela cultura, ou ainda o ingresso […] no campo das identidades”. Acrescentaríamos ainda, com base em M. Rubin (2006), que trata-se de uma nova maneira de fazer história. Afirmaria este autor que se trata de "uma história que deve tocar as massas e não as elites" e com a qual o historiador (seja ele amador ou profissional!) explora "as suas fontes ricas" e encontra "corpos: envolvidos em atividades lúdicas e rituais, rezando, trabalhando, sofrendo" (pp. 113-115).
Como se pode ver, nestes dois autores supramencionados (J. Pesavento, s.d. & M. Rubin, 2006) estão as bases epistémicas que nos permitem suportar cientificamente esse estudo. Trata-se de um estudo sobre vários aspetos da história cultural da ilha de Santo Antão, que percorrendo os seus diferentes trilhos tentaremos contar sobre feitos e realizações como: sua descoberta e povoamento; formação social e miscegenação cultural; vida quotidiana (trabalho e lazer); crenças, ritos e mitos locais (regionais); festas e outras manifestações do folclore típico da ilha, tendendo sempre a retratar a vivência do povo em um tempo recuado, mas não muito distante - séculos XVIII-XX.
Sem mais delongas, começamos por dizer que Santo Antão é uma ilha do Arquipélago de Cabo Verde perdida no Atlântico e, geograficamente, é a mais próxima da Europa, de onde lhe veio uma boa parte da sua cultura, com alguns vestígios da África, trazidos pelos escravos que a ela aportaram aquando do seu povoamento e volvido uns tempos depois da sua descoberta (achamento).
Imagem 1 - Mapa da Província do Insular de Cabo Verde conforme as descrições de Lopes de Lima (1844), posteriormente corrigido e publicado por Cha. Wilson em Londres no ano de 1861 e no mesmo ano em Lisboa.
Com relação a data do seu achamento, António J. Maurício (2015) em sua monografia sobre a História da Vila da Ribeira Grande de Santo Antão num período compreendido entre 1732-1975, escreve que, embora seja difícil situar com precisão a data da descoberta das ilhas do arquipélago de Cabo Verde,
… pode admitir-se, de acordo com os documentos oficiais [cf. Carta régia de 3 de Dezembro de 1640, in Vitorino Magalhães Godinho, Vol. III, Lisboa, 1956, p. 276-278], que teve lugar entre os anos 1460 e 1462. A ilha de Santo Antão, só se encontra mencionada na carta Régia de 19 de Setembro de 1462 [cf. Vitorino Magalhães Godinho, Vol. III, Lisboa, 1956, p. 279-281], juntamente com as ilhas de S. Vicente, S. Nicolau, S. Luzia, e Brava. Se considerarmos os topónimos destas ilhas e as datas do calendário religioso que coincide com o nome de “Santos” (São Nicolau, 6 de Dezembro; Santa Luzia, 13 de Dezembro; Santo Antão, 17 de Janeiro, São Vicente, 22 de Janeiro) pode-se concluir que elas firam descobertas entre Dezembro de 1461 e Janeiro de 1462. A celebração do dia do Padroeiro da ilha a 17 de Janeiro, confirma a data do seu achamento, referenciado pela tradição oral. Depois da descoberta, a ilha foi aproveitada para a criação de gado e […] [à ela] se deslocavam para preparação dos sebos e peles que eram exportados pela metrópole. (Maurício, 2015, pp. 12-13 grifos nossos)
Imagem 2 - Carta da Ilha de Santo Antão, 1887. Fonte: Medina, G. A. (2013). A Ilha de Santo Antão (Cabo verde) através dos mapas da Comissão de Cartografia (1883-1932).
Sobre o povoamento desta ilha, Rocha (1990, p. 125) afirma que este não se processou imediatamente a sua descoberta, devido a “dificuldade de penetração” e a inacessibilidade das suas “rochas cortadas a pique” junto ao “mar de ondas imponentes” e por falta de “caminhos de penetração”.
Pelo que foi possível constatar através da consulta de algumas fontes documentais escritas, o povoamento da ilha foi tardio, sendo difícil indicar com exatidão a data em que se iniciou. Há, portanto, uma imprecisão nas datas, bem visível nas declarações de alguns autores, todos naturais desta ilha.
Entre eles, Agostinho Rocha (1990) um empírico investigador sobre a história local (regional) de Santo Antão, garante em suas memórias históricas sobre Santo Antão, que “O povoamento da ilha foi iniciado em 1462” (p. 14).
Uma outra investigadora, historiadora de formação e como tal detentora de maior crédito científico nesta área (Ferro, 1998), tomando como referência o Pe. António Brásio, surge afirmando em sua citação que “na primeira década de 1600 a ilha era ainda despovoada e que nela não havia mais do que gado” (p. 19). Além disso adianta a própria autora que Santo Antão “ainda em 1610 era despovoada” confirmando igualmente que “devemos concluir que a sua colonização só se iniciou depois de quase um século e meio” a sua descoberta em 17 de Janeiro de 1462.
A nossa última fonte, António J. Maurício (2015), que fazendo uso das suas valências científicas em matéria de investigação, na área de história local (regional) da ilha de Santo Antão, parte dos acervos documentais deixados por notáveis estudiosos e investigadores sobre a História de Cabo Verde (O. Ribeiro, 1995; S. Barcelos, 2003; A. Brásio, 1958) para situar o povoamento desta ilha “entre os finais do século XVI e início do século XVII” (p. 13).
Admitindo que o povoamento de Santo Antão tenha-se começado quase um século e meio após a sua descoberta, mais precisamente nos finais do século XVI e início do século XVII, podemos acrescentar que este processo foi iniciado, nos primeiros tempos, a partir da Povoação de Santa Cruz, posteriormente elevada a categoria de vila em 1732 - Vila da Ribeira Grande.
Imagem 3 - Vista da Povoação da Ribeira Grande na ilha de Santo Antão (1864, aprox.). Fonte: Medina, G. A. (2013). A Ilha de santo Antão (Cabo verde) através dos mapas da Comissão de Cartografia (1883-1932).
O processo de povoamento efetuou-se com brancos europeus e escravos afro-negros. E na confirmação disto, Ferro (1998) historiadora já mencionada, diz que a ilha de Santo Antão
… foi primeiramente povoada por algarvios [sendo estes os primeiros colonos portugueses que fixaram residência nesta ilha] e africanos vindos de Santiago, a que se juntaram ilhéus, madeirenses e açorianos [mas isto dá-se no século XIX] [sic], espanhóis, judeus, norte-americanos, italianos e […] [ingleses e franceses, raças chegadas à ilha depois dos primeiros colonos, devido a benignidade do seu clima com relação às outras ilhas irmãs do arquipélago]” (Ferro, 1998, p. 20 grifos nossos).
A propósito dos primeiros colonos portugueses, além dos algarvios, também temos os alentejanos e minhotos que, segundo Agostinho Rocha (1990, p. 14) “foram enviados” da metrópole para a ilha de Santo Antão a fim de procederem a exploração da “agricultura”. Mas, tendo eles deparado com a escassez de mão-de-obra na ilha, tiveram de importar da ilha de Santiago escravos já ladinizados ou mesmo libertos para trabalharem nessa atividade. Do cruzamento entre os indivíduos dessas diferentes raças formou-se o crioulo mestiço, habitante típico da ilha de Santo Antão.
Por aquilo que acabamos de dizer, reconhece-se, sem motivos para quaisquer ceticismos, que a miscigenação social e cultural é um dos principais aspetos que marca a história cultural da ilha Santo Antão. Isto porque o povoamento da ilha fez-se com gentes de várias proveniências do globo, isto é, portugueses, espanhóis, italianos, franceses, ingleses, norte-americanos, judeus ou cristãos novos e afro-negros ou escravos. E das relações entre os indivíduos dessas diferentes raças nasceu uma sociedade autónoma, diferente da das outras irmãs, nas tradições culturais, costumes e festas que caracterizam especificamente o povo desta ilha.
Passando agora para o tópico seguinte deste artigo - vida quotidiana entre o trabalho e o lazer -, temos a dizer que na vida do dia-a-dia percebemos o tempo como uma sucessão temporal entre trabalho e festa (lazer) e, neste suceder, uma diferenciação e mudança de atitude das pessoas entre um tempo e o outro. No tempo de trabalho, uma postura e uma atitude séria, um pouco artificiais. No tempo de festa, uma postura e uma atitude lúdica, alegre, desarmada criativa, natural e espontânea.
A regulamentação do tempo é algo natural. Tiramos da sabedoria popular o que nos mostra a sua natureza. Existem vários e diferentes tempos, isto é, tempo de plantar, tempo de colher, tempo de celebrar, etc. Igualmente o calendário estabelece e sinaliza o tempo de festa, de descanso, de trabalho e os dias obrigatórios de suspensão do trabalho.
Imagem 4 - Homens e bois no trabalho de trapiche. Fonte: Lima, A. L. et al. (s.d.). Domila’99 – Homenagem a João Francisco Lima. S.L.: Rosariense / Ministério da Cultura.
No Arquipélago de Cabo Verde, a propósito de um dos aspetos do tempo de trabalho, houve uma época em que "fez escola" o tão propalado “mito da indolência cabo-verdiana”, um assunto que foi variadíssimas vezes trazido à baila das discussões pelos intelectuais, mas que a partir da década de sessenta do século XX (1960) ficou totalmente desfeito[i].
Na origem desse mito está a pressão exercida pelos colonos sobre os escravos no cumprimento da "rotina do trabalho instituído" e que consideravam negativas certas posturas vindas das práticas espontâneas dos afro-negros agregados em tempo de festa, com a justificativa de que essas práticas podiam prejudicar a produtividade e favorecer a indolência, a lasciva, a devassidão.
Desfazendo esse mito, convém dizer que desde a alvorada dos tempos, na ilha de Santo Antão, sobretudo, a contar a partir do início do seu povoamento, a vida no dia-a-dia quase resumia-se ao trabalho e não havia "tempo sequer para "esfregar nos olhos". Pois, nega isto a ideia de que o santantonense, tal como qualquer outro insular do arquipélago é indolente (pessoa que não gosta de trabalhar) e muito festeiro. Desde essa altura, o tempo de trabalho dos cabo-verdianos, sobretudo dos santantonenses, é investido, sobretudo, no trabalho do campo, na prática da agricultura ou da pesca. Sobre isto, Nogueira Ferrão (1898), autor supramencionado, diz que o povo de Santo Antão é "dotado ao trabalho e à operosidade". Atesta que no tempo de trabalho os homens desta ilha
… occupam-se na cultura das terras […] e na vida do mar; as mulheres […] transportam carga, e numa pequena parte do anno ajudam os homens nos serviços das colheitas e sementeiras, além dos serviços domésticos próprios do sexo. (sic Ferrão, 1898, p. 29 grifos nossos)
Imagem 5 - Mulher transportando carga à cabeça, ajudando os homens na colheita da cana de açúcar. Pormenor de uma foto acedido online em: http://nosgenti.com/?p=947
Antigamente havia mais trabalho porque as chuvas eram mais frequentes e regulares e os terrenos fertilíssimos. Assim a vida decorria normalmente na ilha labutando nos vales e nos campos; nos trapiches, nas meradas, na apanha do café, nas culturas alimentares, na recolha da urzela e da purgueira, na colheita dos frutos. Era essa a vida regular que povo desta ilha levava. Uma vida laboriosa, cujo tempo ocupado no trabalho, sujeita a um sistema de interditos e cheia de (pre)ocupações em que a máxima latina quieta non movere[ii] era a ordem do mundo, um mundo onde vivia o povo desta ilha, tranquilo, sem muitos alvoroços.
Imagem 6 - Pormenor do Cais
da Ponta do Sol (Boca de Pistola), onde se pode identificar provas materiais de que os homens de Santo Antão também se ocupam da vida ao mar. Fonte: http://www.rutas-turisticas.com
Contudo, em certos momentos a vida do povo de Santo Antão deixava de ser tranquila e tornava-se muito agitada, divertida, alegre e cheio de fulgor. Tudo isto graças aos diversos tipos de festas realizadas na ilha, nas quais integramos não só os tradicionais folguedos mas também todas as manifestações culturais que enformam o ciclo ritual das festas tradicionais desta ilha. Estamos nos referindo ao tempo marcado pela celebração das festas de batizado, casamento, defunção, culto festivo, romaria e/ou festa ao patrono. Portanto, esse tempo representa uma rutura com a s rotinas do quotidiano cingida à sucessão das horas de trabalho nas diferentes localidades e/ou lugarejos da ilha.
Imagem 7 - Folguedo na Vila da Ribeira Grande, Santo Antão. Fonte: Lima, A. L. et al. (s.d.). Domila’99 – Homenagem a João Francisco Lima. S.L.: Rosariense / Ministério da Cultura.
Assim sendo, se olharmos, retrospetivamente, para a história cultural da ilha de Santo Antão de acordo com os nossos registos de "história e memória", estes nos revelam o povo desta ilha aproveitando, em tempos idos, os dias de folga da labuta no campo para aliviarem a tensão dos seus “músculos cansados e os corpos cheios de suor” rentados pelo trabalho da lavra, fazendo recurso ao lazer, através de festejos. Este fato é assinalado por Agostinho Rocha (1990) quando diz que, "em seus tradicionais folguedos", os habitantes desta ilha
divertiam-se muito […] e assim faziam os bailes nacionais, com violino, viola, violão e cavaquinho, e nos lugares mais pobres faziam os bailes de «bico» e viola, isto é, cantados para a viola executar; dançavam a contradança, a mazurca, o galope, o chotice, a valsa, o «pas-de-quatre», a vira, o tango e o landum. (Rocha, 1990, p. 50 grifo nosso)
Ainda no que concerne ao lazer, importa ressaltar outras comemorações que também marcam local e culturalmente a ilha e que abrangem todas as manifestações do seu ciclo ritual das festas tradicionais típicas. Diferentes tipos de festas que, segundo o sociólogo da cultura Albini Luchini (s.d., p. 228) podem, em teoria, ser decompostas numa trilogia: 1) Celebrações festivas sazonais; 2) Cultos festivos; 3) Festas aos patronos.
Pois, abordaremos essas diferentes categorias de festas nos próximos artigos ainda enquadrados na apresentação e discussão dos temas do nosso projeto "Outros Trilhos de História da Ilha de Santo Antão".
Referências bibliográficas
Ferrão, C. R. (1898). Estudos Sobre a Ilha de Santo Antão. Lisboa: Imprensa Nacional.
Ferro, M. H. (1998). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão de Cabo Verde (1462-1900). Praia: Inspituto de Promoção Cultural .
Lessa, A.; Ruffié J. (1960). Seroantroplogia das Ilhas de Cabo Verde Mesa-Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.
Lima, A. L. et al. (s.d.). Domila’99 – Homenagem a João Francisco Lima. S.L.: Rosariense / Ministério da Cultura.
Luchini, A. (s.d.).«Ideologias, Crenças Religiosas e Instituições». In: F. B. A. Akoun, Enciclopédia Sociológica Contemporânea - Volume II. Porto: Rés. (pp. 179-242).
Maurício, A. J. (2015). Vila da Ribeira Grande de Santo Antão (1732-1975): Percurso Histórico e Dinâmica Administrativa. Mindelo: IUE - Escola de Formação de Professores do Mindelo.
Pereira, J. A. (1988). «História Local». In: Água Mole – Revista de Cultura Popular. Braga: Grupo de Professores da Escola Preparatória DR. Francisco Sanches. pp. 28-34.
Pesavento, S. J. (s.d.). História & História Cultural. Acedido online em: https://www.passeidireto.com/arquivo/6688920/pesavento-sandra-jatahy-historia--historia-cultural - Data de acesso: 24-03-2016.
Rocha, A. (1990). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão (1462/1983). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.
Rubin, M. (2006). «Que é a história cultural hoje?» In: D. Cannadine, Que é a História Hoje?. Lisboa Gradiva. pp. 111-128.
Notas de fim:
[i] Cf. Almerindo Lessa e Jacques Ruffié (1960). Seroantroplogia das Ilhas de Cabo Verde Mesa-Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano [Capítulo II, 4 – Segunda Reunião – Tema III: Indolência Cabo-verdiana, pp. 131-138]. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.
[ii] Em português significa "não agitar o que está sossegado”.