OUTROS TRILHOS DE HISTÓRIA DA ILHA DE SANTO ANTÃO (II): Festa de Batizado para "conduzir a criança de uma mãe a outra" e como motivo de receção de "sonts oi".
Há mais de uma década, António Correia e Silva, auto definindo como “um sociólogo seduzido pela história”, ao ser entrevistado pelo jornalista José Vicente Lopes (2004, p. 205), quando questionado por esse grande profissional da comunicação social “se os caboverdianos tratam bem a sua história”, sem titubear e nem papas na língua, responde que “Os caboverdianos não acarinharam muito a história que têem”. Fundamenta Correia e Silva que essa falta de afeto dos cabo-verdianos para com a sua história deve-se ao facto de o passado ser visto
… como algo a esquecer, na medida em que era um tempo alienante. Era um tempo em que viviamos sobre o domínio do outro, havia uma constante inibição da manifestação cultural, política, e social do cabo-verdiano.
Em Cabo Verde, como em outros países recém independentes, o encontro com a história não ocorre no exacto momento do dia da libertação. Há um hiato. Só agora os cabo-verdianos começaram a pensar mais na história, até porque começaram a dar-se conta que têm valores que precisam conhecer. Mesmo ao nível de uma elite, que tem a responsabilidade de governar o país, começa-se a perceber que só se pode transformar algo que conheça e que é preciso investir no conhecimento.
Investir no conhecimento histórico é, de certo, modo, preparar-se para o desenvolvimento, porque o conhecimento do passado é um imperativo da transformação do futuro. Uma história que esclareça o país e mostre as origens ou a lógica de detrminados constrangimentos ou potencialidades. Aliás, este fenómeno tem sido, mais ou menos, universal, e está na base do novo interesse pela história. (Lopes, 2004, pp. 205-206)
Baseando nas ideias expostas no trecho que acabamos de transcrever, afirmamos que a nossa aposta no desenvolvimento do projeto Outros Trilhos de História da Ilha de Santo Antão através destes artigos «postados» no blog, é um meio que encontramos para atingir um fim: investigar sobre a nossa história no domínio cultural para efeito de reconciliação com o passado.
Como dizem os mais velhos, na vida «tudo tem o seu tempo e há um tempo para tudo». A propósito do tempo para fazermos as coisas, pensamos que este é o tempo certo de começarmos a dar o nosso contributo pessoal, investindo no conhecimento da história da ilha que nos viu nascer, visando a transformação do futuro. Para esse resultado, escolhemos a cultura cabo-verdiana como Bildung do historiador, mas delimitado às dinâmicas e aspetos culturais da ilha de Santo Antão.
Com o nosso investimento nesse domínio da história, pretendemos esclarecer as pessoas e mostrar-lhes outras perspetivas e abordagens sobre a realidade da ilha de Santo Antão. Igualmente, mostrar-lhes as nossas potencialidades no campo do Labor histórico e a nossa paixão pela história cultural, mesmo não tendo formação académica de raiz e ou especializada em história.
O nosso trabalho delimita-se ao campo da história da cultura cabo-verdiana, isto é, ao trama das dinâmicas e dos aspetos culturais locais (ilha de Santo Antão), porque pensamos que hoje, mais do que nunca, é necessário redefinir a
… verdadeira dimensão do “Homem Cabo-verdiano” [a qual requer] uma eficiente participação de todos [os ilhéus] na recolha de dados e na reorganização da sua história a partir dos alicerces (raízes) unificadores do coletivo (a Cultura Nacional), os únicos que facultam o conhecimento exato da intercomunicação dos elementos constitutivos dessa realidade sociocultural. (Filho, 1983, p. 5 grifo nosso).
Com base no trecho que acabamos de citar, declaramos que os temas cujo desenvolvimento temos agendado ao longo da execução desse projeto - Outros Trilhos de História da Ilha de Santo Antão -, é uma forma que encontramos para “reorgnização da nossa história”, a partir das “raízes unificadoras da cultura cabo-verdiana” (história cultural nacional), em particular os aspectos e dinâmicas culturais da ilha de Santo Antão (história cultural, regional e local).
Como notaram, em nosso primeiro artigo postado nesse blog, dando início ao desenvolvimento desse tema, fizemos abordagem de alguns aspetos sobre a história regional (local) da ilha de Santo Antão, tais como: descoberta e povoamento, formação social e miscigenação cultural e vida quotidiana numa perspetiva dicotómica, isto é, entre o trabalho (rotina) e o lazer (quebra da rotina). Também notaram, no término da redação desse artigo, que fizemos referência à uma trilogia de festas que se dividem em: celebrações festivas sazonais, cultos festivos e festas aos patronos.
Quanto às celebrações festivas sazonais, temos a dizer que elas são um tipo de festas que marcam as grandes épocas da vida como o nascimento, o enlace e a morte e, como tal, são generalizadas pelos batizados, casamentos e defunções[i]. Estamos falando, concretamente, das suas celebrações segundo os rituais da religião católica apostólica romana e da tradição cultural da ilha de Santo Antão!
Através de alguns “dados estatísticos não oficiais” que tivemos acesso a partir da consulta de duas “fontes documentais escritas” (Albarello et al., 2005) asseguramos que estas celebrações tiveram ocorrência com alguma regularidade nesta ilha entre os séculos XIX e XX.
Segundo Ferrão (1898, p. 78), no ano de 1892, em toda a ilha de Santo Antão, foram realizados 574 batizados, 92 casamentos e 302 funerais. Por seu turno, Rocha (1990, pp. 98-107) nos dá conta de que em 1983 foram realizados 1502 batismos e 76 casamentos canónicos, mas com a particulridade de serem desigualmente distribuídos pelas diferentes freguesias desta ilha (Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora do Rosário, Santo Crucifixo, São Pedro Apóstolo, Santo António das Pombas, São João Batista e Santo André). Ainda confirma esse autor (Rocha, 1990) que nesse ano faleceram 403 pessoas em toda ilha, sendo os óbitos distribuídos por Concelho do seguinte modo: 152 na Ribeira Grande, 57 no Paúl e 94 no Porto Novo.
As festas de batizado, casamento e finçon realizadas em Santo Antão e igualmente no resto do país, gozam da particularidade de serem todas manifestações culturais que requerem, não só, a execução de rituais religiosos com “recurso ao sagrado” e, ao mesmo tempo, comportam momentos não religiosos, favorecidos pela pândega, diversão e excessos de toda casta, que se traduzem nos seus aspectos a-religiosos responsáveis pela definição da sua “essência profana”.
Com base em Durkheim (2002), afirmamos que a festa de batizado oscila entre dois pólos. De um lado a cerimónia religiosa (manifestação do sagrado), de outro a comemoração festiva (manifestação do profano). O primeiro pólo faz do batismo uma forma exterior e regular de culto, sendo este o seu momento religioso. E o segundo pólo, faz dele um ato festivo com demonstração de alegria e regozijo, sendo esta a parte laica do batizado.
Podemos classificar o batizado como uma festa que comporta, simultaneamente, momentos sagrados e profanos. Quanto a sua essência, diria Emile Durkheim (2002) que é um misto de sagrado e profano. E um misto de sagrado e profano porque
…possui certos caracteres da cerimónia religiosa, porque em todos os casos, tem por efeito aproximar os indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar assim um estado de efervescência, por vezes até de delírio, que não deixa de se aparentar ao estado religioso. O homem é transportado para fora de si, distraído das suas ocupações e preocupações habituais, por isso observamos, de um lado como do outro, as mesmas manifestações: gritos, cânticos, música, movimentos violentos, danças, busca de excitantes que elevam o nível vital, etc. Notou-se muitas vezes que as festas populares levam a excessos, fazem perder de vista a fronteira que separa o lícito do ilícito e, há igualmente cerimónias religiosas que determinam como que uma necessidade a violação das regras mais respeitadas. Não é que não haja motivo, sem dúvida, para distinguirmos as duas formas da atividade pública, pois o simples regozijo, o corrobori profano, não tem objeto sério, enquanto no seu conjunto, uma cerimónia ritual possui sempre uma finalidade grave. Devemos, seja como for, observar que talvez não haja manifestação de regozijo que não ecoe de algum modo a seriedade da existência, no fundo, a diferença está sobretudo na desigual proporção segundo a qual os dois elementos em causa se combinam. (Durkheim, 2002, pp. 389-390)
Como se pode ver, o autor supramencionado considera o batizado uma festa ambígua. Isto porque possui uma parte sagrada ou religiosa, o culto e outra parte profana ou a-religiosa que requer música, dança, momentos ilícitos e "não sérios".
Parafraseando Van Gennep citado em Filho (1997), classificamos o batismo, enquanto cerimónia religiosa implicando a socialização do indivíduo, como um “rito de passagem”, isto é, uma forma peculiar de culto marcado por certas praxes que acompanham “simbolicamente qualquer mudança cronológica, de lugar ou condição social”. Acrescenta-se ainda, com base no autor que acabamos de citar, que o ritual do batismo pressupõe “uma mudança social, na qual se verifica uma alteração do estatuto de ateu para o de cristão, que […] permite pontuar o real e dotá-lo de um sentido” (pp. 41-42).
No que concerne as festas de batizado em Santo Antão, Agostinho Rocha (1990) por seu turno diz que “eram e continuam a ser atrativos”. Na década de oitenta do século XX, caso não fora “a crise por estiagem e a percentagem de desempregados teria havido mais batismos”. Reitera ainda que as festas de batizado são uma excelente oportunidade de convívio e “revestem-se de muita vida e alegria” (Rocha, 1990, p. 49 e 99).
Dita a tradição cultural que no batizado deve haver um padrinho e duas madrinhas. Porém, em certos casos, o inverso é verdadeiro. E verdadeiro porque há uma madrinha e dois padrinhos. Salienta-se que “a madrinha [ou o padrinho] de dentro […] acompanha o ministério do baptismo, a verdadeira madrinha [ou o verdadeiro padrinho], e a madrinha de porta da igreja [ou o padrinho da porta da igreja] […] que conduz a criança” (Rocha, 1990, p. 49 grifos nossos).
Quanto a origem desse cerimonial religioso, temos a dizer que o batismo é uma instituição religiosa e cultural herdada dos brancos portugueses feitos deslocar das antigas regiões da Metrópole onde residiam, para poderem dar início à exploração económica desta colónia africana e acompanhados dos missionários que também vieram para o arquipélago para efeito de realização conversão e batismo (evangelização) dos escravos considerados pessoas indígenas e não civilizadas (vadios).
Pelo que tudo indica, os homens brancos e esses missionários portuguesas eram pessoas oriundas das comunidades aldeãs das várias regiões do interior de Portugal, onde o batismo era celebrado antigamente conforme a tradição. Portanto, em tenra idade da criança, isto é, nos “sete dias depois de nascida” (Santo, 1990, p. 170).
Este autor ainda expõe algumas ideias sobre um aspeto simbólico-religioso muito interessante que se relaciona com o ritual do batismo católico, o qual sugerimos aqui como um outro mote de leitura e análise dessa festa. Trata-se da “simbólica maternal” que suporta os seus rituais e que se praticam com a finalidade de conduzir a criança “de uma mãe a outra” (Santo, 1990). É por isso que à esta cerímónia religiosa, toda criança tem de estar sujeito. Diz ele que o batismo da criança
Marca o momento em que a comunidade […] depois dos sete dias probatórios, reconhece a existência do novo indivíduo e o adota, atribuindo-lhe um nome […] Rejeitada do seio da mãe, a criança é admitida no seio de uma mãe de substituição, uma vez que nem nessa idade, nem em nenhum momento da sua vida, lhe é permitido viver sem uma segunda mãe. Pelo batismo são-lhe mesmo atribuídas diversas mães: a igreja católica de que o padre é o representante, a comunidade […] de que o cura é o «pai» e cujo templo se chama matriz, e também uma mãe de adoção na pessoa da madrinha. O recém nascido é introduzido no seio dessas novas mães por figuras paternas, o padre e o padrinho. As fontes batismais são em forma de matriz e o oficiante serve-lhe de uma concha autêntica, imagem perfeita do seio da mãe e elemento marinho. Batizar é tocar ou mergulhar o neófito na água, ungi-lo com o elemento amniótico para lhe dar consistência e regenerá-lo depois do traumatismo do nascimento […] A cor do batismo é o branco, a cor do leite, como acontece sempre que se adota uma nova mãe ou se evoca a sua acção… (Santo, 1990, pp. 170-171 grifos meus)
Ainda destaca esse mesmo autor que o ato do batismo católico possui uma função social. A realização desse cerimonial implica que a criança seja
… adotada por duas outras famílias, a do padrinho e a da madrinha, que a acolherão em caso de necessidade. O apadrinhamento é uma […] instituição social que emana de um rito religioso mas se autonomiza em relação à religião. Como o compadrio que lhe está ligado, tem por função alargar a família e integrar os indivíduos não ligados pelos laços de sangue. Os laços entre o padrinho e o afilhado são idênticos aos que unem pais e filhos, e criam relações fraternais entre os diversos padrinhos/madrinhas (tornando-se entre si compadres/comadres), além de criarem a obrigação de substituírem os pais carnais no caso destes morrerem antes da criança chegar a idade adulta […] O padrinho e a madrinha dispõem de autoridade sobre os afilhados, como se fossem seus filhos, e aqueles devem saudá-los, quando os encontram pela primeira vez em cada dia, por uma fórmula ritual – igual a usada pelos pais – que corresponde a um pedido de bênção[ii]. A ligação por apadrinhamento integra o padrinho e a madrinha numa rede muito extensa de compadres/comadres que [unam-se] […] pelos laços da fraternidade: se sou padrinho num batizado, torno-me compadre dos pais, dos avós, da madrinha e do seu marido, da parteira (a vizinha que ajuda no parto) e do seu marido, dos outros padrinhos e madrinhas futuras e dos seus cônjuges respetivos. (Santo, 1990, p. 171 grifos meus)
O ato do batismo, segundo Rocha (1990, p. 99) implica “muita festa e para que haja festa tem de haver comida e bebidas”. Tomando esta a condição da festa, o batizado pode ser classificado segundo R. Caillois (1988, p. 96) como uma “festa alegre por definição” onde há muita fartura porque comporta “princípios de pândega e excessos” que se traduzem na “ingestão de comida e bebida”.
Além de participar nessa parte da festa os compadrinhos (atores), também participam os vizinhos, conhecidos e convidados (espetadores) que, solicitados pelos pais da criança ou pelos padrinhos, se juntam para festejar, recebendo os Santos óleos[iii], seguido de festa rijo. Outrora, essa festa era ambientada com bailes ao som do violino, viola, violão, viola e bic e dançava-se contradança, mazurca, galope, chotice, valsa, pas-de-quatre, vira e landum. Eram bons tempos!
Referências Bibliográficas
Albarello, L. et al. (2005). Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva.
Caillois, R. (1988). O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70.
Durkheim, É. (2002). As Formas Elementares da Vida Religiosa. Oeiras: Celta.
Ferrão, C. R. (1898). Estudos Sobre a Ilha de Santo Antão. Lisboa: Imprensa Nacional.
Filho, J. L. (1983). Por Uma Política Cultural. Ponto & Vírgula, 2.
Filho, J. L. (1997). O Corpo e o Pão - O Vestuário e o Regime Alimentar Cabo-verdianos. Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras.
Lopes, J. V. (2004). A explicação do mundo. Praia: Spleen.
Rocha, A. (1990). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão (1462/1983). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.
Santo, M. E. (1990). A Religião Popular Portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim.
[i] Festas tristes por definição e que em Santo Antão costuma-se chamar finçon.
[ii] Antigamente pelo Natal ou Fim de Ano os afilhados iam à casa padrinhos e madrinhas tomar bênção. Levavam encomendas e traziam prendas ou dinheiro oferecidos pelos padrinhos e madrinhas. Era um dia de muita alegria, liberdade e aguardado com bastante expetativa.
[iii] Em crioulo típico de Santo Antão diz-se “Sontes oi” que significa comerem e beberem a sua parte da festa. Ao fim ao cabo, trata-se de uma patuscada de comes e bebes (pândega).