OUTROS TRILHOS DE HISTÓRIA DA ILHA DE SANTO ANTÃO (III): Festa d’guarda-kabésa, p’inxotá Nhá Josefa, ne R’bêra dô Torrre.
Como tínhamos anteriormente publicado em nosso Apontamento, a nossa viagem vai ser longa, demorada, cansativa, na tentativa de divulgação do nosso e vosso projeto Outros Trilhos da História da Ilha de Santo Antão.
Dizem que “cavalo correndo por conta própria não cansa, nunca!” E se assim é, vamos continuar correndo por conta própria, mesmo que não nos deem nem palha, tampouco água. Força de vontade, e reserva no bandulho é o que nós temos!
Atentos ao chão em que estamos pisando, mesmo correndo alguns riscos e com os olhos fitos sempre em frente, direcionados ao nosso foco (a nossa meta), afirmamos, mais uma vez, aqui e agora, que o domínio de investigação onde se enquadra o nosso projeto, é o domínio da história cultural. Estamos nos referindo a um dos domínios da história que, hoje, pelos seus desafios, sejam estes intelectuais e/ou emocionais, no plano académico ou na midia, está sujeito à críticas, problemas e riscos de análise e, quem sabe, ataques vindos de várias direções. E isto deve-se ao fato de que “o historiador, enquanto produtor de um texto, e também o público leitor, consumidor de História, devem assumir a dúvida como um princípio de conhecimento do mundo” (Pesavento, s.d., p. 69). Citando essa mesma autora arriscamos ainda em afirmar que
A racionalidade não explica tudo, operando o historiador com um regime de verdade segundo o qual as conclusões podem ser admitidas como provisórias.
Há mais dúvidas do que certezas, o que compromete o pacto da História com a obtenção da verdade. Esse pacto resta como um valor a atingir, como uma busca sempre renovada, de chegar o mais próximo possível do real acontecido. Mas o resultado é sempre uma versão possível, plausível. Isso por vezes é confundido com a tal postura pós-moderna que pesa como uma acusação sobre a História Cultural: segundo essa abordagem, a História não é ciência nem visa a atingir um conhecimento sobre o passado. Ela seria igual à Literatura, ou seja, visaria a agradar, divertir, oportunizar fruição estética. Não teria maiores preocupações com problemas sociais ou questões políticas maiores – estas, sim, sérias – e só visaria a agradar o público, com uma História-passatempo. (Pesavento, s.d., p. 69)
Realmente, o projeto de investigação que tencionamos empreender no domínio da história, apostado no desenvolvimento de temas no domínio da cultura que já começamos a divulgar e socializar em nosso blog, tem como objetivo, à luz das ideias expressas no trecho acima transcrito, "agradar", "divertir", criar oportunidades para a "fruição estética", enfim, contribuir para edificação de uma “história-passatempo”.
Trata-se de um hobby e nada mais, mas com segundas intenções (boas intenções)! Aqui não estamos sob os condicionamentos de procedimento metodológico e presos às formalidades científicas e académicas da “história que todos contam”. Não é uma história posta ao serviço dos problemas sociais e/ou questões políticas maiores e mais sérias, como diria a autora supramencionado e igualmente nos sugeriu que fizéssemos um ex-discípulo nosso, do Liceu. Informamos que esse discípulo, foi um grande aluno nosso, hoje “homem feito, louvar a Deus!”, um excelente profissional do Direito à busca de oportunidades, bom cidadão cabo-verdiano, um conterrâneo santantonense e também nosso kompas, como diria o Mantókas.
Esse kompas, nos tratando de “meus mestres" e "grandes professores”, em seu comentário post@do diretamente em nosso blog, um esp@ço de p@rtilha e de muita reflex@o, afirmou categoricamente que hoje existe uma “decadência da ilha de Santo Antão, em todos os níveis”. Vejam só meus senhores: decadência de uma ilha, a ilha que nos viu nascer, em todos os níveis!
Trata-se de uma afirmação muito arrojada que, sem bazófia ou lisonja, demonstra que aprendeu muito com as aulas de filosofia que connosco teve no liceu. Com o estudo dessa disciplina conseguiu “sair da caverna”, libertou-se, como uns tantos outros, dos “grilhões da vida”.
Mas, meu kompas, empreender um projeto de investigação sobre a decadência da ilha de Santo Antão, em todos os níveis? Neste preciso momento, abrenuncia! Se tivermos de o fazer um dia, figa conhóta berdolega espanha… O que importa é que o desafio está lançado. No futuro, quem sabe, juntos (eu, tu, ele/ela, nos, vós, eles/elas…), possamos fazer disto um "constructo", para o bem, o “bem comum” da nossa ilha!
Decadência, degradação, abandono, esquecimento, morte e enterro… Nesta hora de festa de finçon de (e ne) sintonton, uma "festa triste" que muitos consideram não ser festa, mas que na realidade é uma festa porque, de acordo com a tradição desta ilha, tem de comportar um momento de patuscada de comes e bebes. Perguntamos: quem não gosta de um bom Kefê d’funto?
Senhores e senhoras, um grogue pe trá boca de mort, pode ser? Vamos! Grogue goela abaixo fazendo clutch clutch clutch, moda ti Kémil irmão de Irmon Toi, que morreu em Ribeirinha de Jorge, Ribeira da Torre e foi levado p’ra Tchan d’Ilhéu, diazá…
Passado alguns instantes, escutamos, baixinho, nesta hora de dor e tristeza, uma voz oficiando em nome dos finados, de todos os finados, inclusive o filho que cá em baixo, há dois dias foi “dado à terra”, no Alto de São Miguel: Sans tibi Diminae Rex eterna Glória, Amem[i].
Pegando de novo no desafio que nos foi feito pelo nosso kompas, dizemos que pelo que pensamos e nos ideais em que acreditamos, seria bastante interessante investir na Bildung da história tendo como possível mote a génese e evolução da “morte” da ilha de Santo Antão, tantas vezes anunciada, precocemente, já em tempo colonial, mas hoje mais visível que nunca, porque existe uma degradação desta ilha, em nosso entender, pelo menos, ao nível intelectual (pobreza de espírito). Afirmamos, sem medo e nem tabus, que é uma degradação que se vislumbra há um palmo da nossa testa. Vemos isso, todos os dias, em nossos locais de trabalho… Num simples café ou bar, todos igualmente espaços públicos de socialização e comércio de ideias. Quem diria, Santo Antão!
Vejam que esta ilha, outrora, deu à Metrópole alguns “Cabo-verdianos ilustres”, passe as expressões que tomamos emprestado num amigo de Cabo Verde em tempo colonial (décadas de 50 e 60), o cidadão metropolitano e advogado Dr. António Barros (1961, pp. 34-35). Alguns deles, como redigiu, com provas dadas no domínio da ciência, arte da navegação, defesa militar, política, etc. Temos, a título de exemplo,
… Roberto Duarte Silva […], notável químico e professor em Paris, onde tem uma estátua; […] Simão Alves Juliano [Simão Salvador] […], ilustre marinheiro, que tem um busto na Praça do Comércio, no Rio de Janeiro; Viriato Gomes da Fonseca […], general, deputado e vogal do antigo Conselho Colonial. […]
Como se vê, ministros, militares […], professores, homens de ciência, devendo salientar-se, sobretudo, o cientista dr. Roberto Duarte Silva, honrado com um busto em Paris, o que, só por si, em uma homenagem à altitude científica do seu espírito”. (Barros, 1961, 34-35 grifos nossos)
Mas, por agora não é nossa intenção imiscuirmos-nos em assuntos da história social e política, mesmo que estejam esses motes de investigação histórica a trespassar a nossa frente e sintamos um pouco à vontade nestas matérias. Não são o nosso Foco. Quem sabe, um dia, possamos nos aventurar por essas bandas. Mas atenção! Isso, em nosso entender, só quando tivermos ganhado o juízo suficiente, mais velhos e demasiadamente experimentados em investigação histórica.
Esta recusa, justifica-se pelo fato de não desejamos ser condenados ao ostracismo ou à morte aqui na Povoação da Santa Cruz, (Vila da Ribeira Grande a partir de 1732, Puvoçon há uns anos e Puva hoje) como na antiga Grécia, em pleno contexto de uma democracia ateniense. Se bem que gostaríamos de ter o traquejo de um Sócrates, Platão ou Aristóteles! Mas, não sendo possível, contentemos com as lições dos sofistas…
Fechado esse parêntese e para nos esquivarmos dos alentos e ímpetos dos que se dizem ser eles especialistas em história, os únicos detentores do conhecimento histórico (história da arte, como nos afirmaram!) e que mesmo sendo especialistas, ainda esses "cérebros" ou "cabeças bem cheias" não tiveram a coragem suficiente de usar os seus títulos académicos e aquisições (graduações, pós-graduações, outros títulos mais) e suas aquisições e competências para dar provas em investig@ção histórica, criando assim, como nós, um blog para efeito de p@rtilha e socializ@ção das suas realizações e ideias (boas ideias como condição, exigimos nós!) no campo do saber histórico, que corresponde à sua "zona de conforto". Arriscar nunca é demais para um professor (primário, secundário ou universitário) que pelo seu papel que desempenha no domínio cultural e social, tem de ser empreendedor, por natureza.
E nós, assumindo na plenitude os nossos saberes, como professores empreendedores em ciências humanas e sociais, informamos que a nosso modo de fazer história não vai de encontro à história que “todos contam” e a maioria faz, pensa e defende. É uma história que vai de encontro àquilo que é a história hoje, direcionada para várias linhas de investigação, sendo uma dessas direções as vivências do mundo sensível, associadas ao simbólico e ao fantástico. É um tipo de história muito soft, descomprometida, não académica. Ou seja, uma história-passatempo associada às áreas como antropologia, etnografia, sociologia, filosofia, literatura e agora, num mudo cada vez mais globalizado e prospetivo, surge-lhe como parceiro certo, uma grande colaboradora (ferramenta) as tecnologias de informação e comunicação (TIC). Estamos nos referindo à história cultural e não a história política ou àquela que se ensina atualmente no liceu.
A propósito daqueles que defendem cegamente a ideia de especializações em história, fomentando a “unidimensionalidade” do pensamento, citamos Edgar Morin (2003, p. 88) para defender o nosso projeto de investigação em história cultural. Este sim, um trabalho que vai de encontro à “pluridimensionalidade” do pensamento e, escrupulosamente, rege-se pelos ditames de uma “reforma de pensamento”. Com base neste (sociólogo, historiador e filósofo) argumentando, defendendo que,
Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e impercetível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes…
Há, efetivamente, necessidade de um pensamento: […] que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e que o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes; […] que reconheça e examine os fenómenos multidimensionais, em vez de isolar; de maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões; […] que reconheça e trate as realidades, que são, concomitantemente solidárias e conflituosas (como a própria democracia, sistema que se alimenta de antagonismos e ao mesmo tempo os regula); […] que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade.
É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto. De fato, a reforma do pensamento não partiria de zero. Tem seus antecedentes na cultura das humanidades, na literatura e na filosofia, e é preparada nas ciências. (Morin, 2003, p. 88)
Depois dessas longas considerações (algumas delas farpas, e por isso desculpas a quem não merece ouvi-las, outros esclarecimentos necessários e, desde já perdão por toda essa maçada de leitura, mas infelizmente inevitável!), passemos agora, sem mais delongas, para o estudo do tema anunciado no subtítulo do nosso artigo. Se já estiverem perdidos por causa desses tantos rodeios, chamamos atenção que estamos falando da festa de guarda-kabésa, uma outra “celebração festiva sazonal” (Luchini, s.d.) que se realiza em Santo Antão e também nas outras ilhas irmãs.
Percorrer sobre os trilhos da história dessa festa, requer, sem dúvida, fazer um trabalho histórico na vertente popular, sentimental e oral (folclórica). Referimos-nos, concretamente, à história sobre as estórias e contos que, associados à certas crendices e superstições do nosso povo, alimentam o espírito do tempo que é caraterístico de certas manifestações culturais da ilha de Santo Antão, como a festa de guarda-kabésa, por exemplo.
Informamos que este artigo agora dedicado ao estudo dessa festa é apenas um parêntese (um longo parêntese, o que já era para nós previsível!) que abrimos a fim de podermos compreender melhor a essência da festa de batizado.
A propósito de estórias, superstições e crendices da ilha de Santo Antão, um dos seus domínios de atuação é o “bruxedo”, como dizem, “encantamento”, sustentado na ideia de que existem bruxas, isto é, “pessoas que têm efeitos maléficos” e o poder mágico ou sobrenatural de “comer uma criança” (Silva, 1998). É esta crença um dos motes, se não o principal motivo, que sustenta a realização da festa de guarda-kabésa, nesta ilha, em Santiago e nas outras ilhas do arquipélago de Cabo Verde.
Ciente dessa crendice nas bruxas, surge-nos agora uma necessidade, a necessidade de compreendermos melhor os significados de conceitos como "bruxa", "bruxaria, "feitiçaria", o que requer uma clarificação dos mesmos no campo lexical e semântico. Pelo que atestam os autores Cabot & Cowan (1992) “Bruxa” é uma palavra
…deliciosa, impregnada de antiquíssimas memórias que remontam aos nossos mais remotos ancestrais, que viveram em estreito contato com os ciclos naturais e apreciaram o poder e a energia que compartilhamos com o cosmo. A palavra Bruxa pode instigar essas lembranças e sentimentos, até no espírito mais cético.
A própria palavra evoluiu através de muitos séculos e culturas. Há diferentes opiniões sobre as origens da palavra inglesa Witch (bruxa). No anglo-saxão antigo, wicca e wicce (masculino e feminino, respectivamente) referem-se a um ou uma vidente, ou aquele (ou aquela) que pode prever informações por meio da magia. Dessas palavras radicais derivamos a palavra wicca, um termo que muitos na Arte usam hoje para se referirem às nossas crenças e práticas. Wych em saxão e wicce em inglês arcaico significam “girar, dobrar, moldar”. Uma palavra radical indo-europeia ainda mais antiga, wic, ou weik, também significa “dobrar ou moldar”. Como Bruxas, dobramos, subjugamos as energias da natureza e da humanidade para promover a cura, o crescimento e a vida. Giramos a Roda do Ano à medida que as estações passam. Moldamos nossas vidas e ambientes para que promovam as boas coisas da Terra. A palavra Witch também pode ter a origem na antiga raiz germânica wit – saber. E isso fornece igualmente um certo insight sobre o que é uma Bruxa – uma pessoa de saber, versada em verdades científicas e espirituais.
Nas origens de muitas línguas, o conceito de “Witch” fazia parte de uma constelação de vocábulos para significar wise (sábio) ou “wise ones” (os sábios). Em inglês, vemos isso com extrema clareza na palavra magic, a qual deriva do grego magos e da palavra persa arcaica magus. Ambas estas palavras significam “vidente” ou “feiticeiro”. No inglês arcaico, o vocábulo wizard significava “o que sabe”. Em muitas línguas, Bruxa é a palavra encoberta nos termos comuns, cotidianos, para sabedoria. Em francês, a palavra para parteira é sage-femme, “mulher sábia”.
A sabedoria enriquece a alma, não apenas o espírito. E diferente da mera inteligência, informação e sagacidade, que só residem na mente. A sabedoria vai mais fundo do que isso. Quando o cérebro, com sua multidão de fatos e peças de informação, deixa de existir, a alma persistirá. A sabedoria imarcescível da alma sobreviverá.
A palavra grega para a alma é psyche. Pensamos frequentemente nos psíquicos como indivíduos talentosos e raros porque podem usar como fonte essa sabedoria universal, mas o dom não é raro. Todos nós o possuímos; cada um de nós é um indivíduo dotado de alma. Todos dispomos de poderes psíquicos ou poderes anímicos, e cada um de nós pode reaprender – ou recordar – como usá-los.
Embora homens e mulheres compartilhem do poder da magia, a palavra Witch tem estado mais comumente associada a mulheres do que a homens; no entanto, os homens na Arte são também denominados Witches (Bruxos). Durante a Era das Fogueiras, 80% dos milhões de pessoas que foram queimadas vivas por prática de feitiçaria eram mulheres. Ainda hoje, a maioria dos praticantes da Arte são mulheres, embora esteja aumentando o número de Bruxos. Há uma boa razão para pensar na Feitiçaria como uma Arte feminina. O poder de uma Bruxa ocupa-se da vida, e as mulheres estão biologicamente mais envolvidas na geração e sustento da vida do que os homens. Não é uma coincidência que quanto mais homens se fazem presentes no momento do parto e assumem responsabilidades na assistência ao bebê recém-nascido, maior é o número de homens que se interessam pela Arte. O espírito dos tempos está levando homens e mulheres a restabelecerem a ligação com os mistérios da vida que se encontram nos ritmos naturais da mulher, da Terra e da Lua – pois os mistérios da vida são os mistérios da magia.
A magia é o conhecimento e o poder que promanam da capacidade de uma pessoa para transferir a seu talante a consciência para um estado inabitual, visionário, de cognição ou percepção inconsciente. Tradicionalmente, certos meios e métodos têm sido usados para causar essa transferência: dança, canto, música, cores, aromas, percussão de tambores, jejum, vigílias, meditação, exercícios respiratórios, certos alimentos e bebidas naturais, e formas de hipnose. Ambientes espetaculares e místicos, como bosques, vales e montanhas sagrados, igrejas ou templos, também alterarão a consciência. Em quase todas as culturas alguma forma de transe visionário é usada para os rituais sagrados que abrem as portas para a Inteligência Superior ou para o trabalho mágico.
Desde os tempos neolíticos, a prática da Feitiçaria sempre gravitou em torno de rituais simbólicos que estimulam a imaginação e alteram a consciência. Rituais de caça, experiências visionárias e cerimônias de cura sempre tiveram lugar no fértil contexto dos símbolos e metáforas próprios de cada cultura. Hoje, as meditações e sortilégios de uma Bruxa continuam essa prática. O trabalho de uma Bruxa é trabalho mental e utiliza poderosas metáforas, alegorias e imagens para revelar os poderes da mente. Os índios Huichol do México dizem-nos que a mente possui uma porta secreta a que chamam nierika. Para a maioria das pessoas, ela permanece fechada até o momento da morte. Mas as Bruxas sabem como abrir e transpor essa porta ainda em vida e trazer de volta, através dela, as visões de realidades não ordinárias que propiciam finalidade e significado à vida.
As imagens e os símbolos da Feitiçaria possuem uma qualidade misteriosa e mágica porque tocam em algo mais profundo e mais misterioso do que nós próprios. Desencadeiam verdades perenes represadas no inconsciente, as quais […] fundem-se com as respostas instintivas do reino animal e podem abranger até a criação inteira. O conhecimento mais profundo, do outro lado da nierika, é sempre conhecimento do universo. Está sempre presente, ainda que, como a chama de uma vela na luz ofuscante do sol, pareça invisível e incognoscível. Mas a magia transporta-nos para esses domínios profundos do poder e do conhecimento. Ela nos leva a mergulhar na suavidade do luar, onde a chama de uma vela cintila constante. Pode fazer nos transpor a nierika e depois trazer-nos outra vez de volta.
Os conhecimentos profundos que provêm do inconsciente nem sempre podem ser expressos em palavras; requerem frequentemente a poesia, o canto e o ritual. Algures no centro da alma humana existe um senso de identidade que jamais pode ser transmitido somente por palavras de um ser humano para outro. Cada um sabe haver em si muito mais do que pode ver ou expressar, tal como sabe haver no universo mais do que atualmente compreende. Na melhor das hipóteses, o indivíduo só pode fornecer alusões e lampejos do seu eu mais profundo através das coisas de que gosta, daquilo que teme, do modo como se desempenha, da forma como sorri. Guardado no centro do seu ser está o segredo do que ele é e do modo como se relaciona pessoalmente com o resto do universo.
O conhecimento que uma Bruxa tem de si mesma, da natureza, do poder divino que transcende o próprio cosmo pode expressar-se melhor através do mito, símbolo, ritual, drama e cerimônia […]. E verificamos assim que, desde os tempos mais remotos, homens e mulheres virtuosos de todas as culturas criaram práticas ricas em símbolos e metáforas que a mente inconsciente reconhece e entende intuitivamente: tambores, gemas, penas, conchas, varas de condão, taças, caldeirões, ferramentas sagradas e vestimentas feitas de plantas sagradas, animais e metais repletos de poder. São essas as imagens que revelam os padrões de conhecimento que estão subjacentes no universo físico. São essas as imagens que nos conduzem ao poder secreto que se oculta no centro das coisas, incluindo os nossos próprios corações. Com esses ritos e imagens podemos – como dizem as Bruxas – ‘puxar para baixo a Lua’. (Cabot & Cowan, 1992, pp. 26-30)
Queremos anunciar que o subtítulo completo deste artigo é Festa d’guarda-kabésa, p’inxotá Nhá Josefa… Kel bruxa de rób ézéd ê k’te k’mê nó gót, ne kôtchôrr, ne Fernendin di meu, nhê primer amor; Kantamás, pá ká k’mé kel ónje d’ Bia de Silvestra, um mês e pôc dia d’pôs de sê dia de sét ne R’bera dô Torre. Daí que pedimos licença aos nossos leitores e, ao próprio autor da obra consultada (Dias, 2006) o nosso pedido de autorização (com humildade, responsabilidade, motivação plausível e boas intenções) para transcrevermos na íntegra a sua e, neste caso, a nossa “estória da Nhá Josefa”, uma estória, para nós, mut séb, mas para muitos pode ter o sabor de “grog máfe que ‘Ntône Rôbôc anda entornando goela abaixo”, isto é, concretamente para aquelas pessoas que ainda acreditam em bruxas, em pleno século XXI, era da "Electra". Electra sim! Mas, menos nos dias chuvosos e na hora de cobrar a fatura. Agradecendo à ela diria 'luz pógód, czement órmód', o nosso Djunga, Pé Jôn Rezlina (João Nascimento Medina, 1914-2002), uma grande figura de Ribeirinha de Jorge, residindo eternamente hoje, no Alto de São Miguel. Paz na tua alma, Djunga!
Essa estória é um caso de bruxedo na Ribeira da Torre[ii], uma das principais ribeiras do concelho da Ribeira Grande, que começa esconjurando uma senhora (uma bruxa até nosso familiar, por afinidade, por isso muito cuidado!) que muita gente, assim como o próprio autor ainda ‘huminha’ e nós um “gron d’mi” como nos chamava César, "o desgraçado"… também pensávamos, inclusive o próprio malogrado César, a nossa Tia Gina (que ingrata!) e outros kompas d'infância em Fajã Domingas Benta, ser ela um fetcêra d’rób ezéd. Começa assim essa estória:
Figa cónhota berdolega espanha! Dedos em cruz atrás das costas, os passos voando lestos na estrada empoeirada do vale, á caminho da escola do Marrador. Mi’m n’tem poder c’mim, Nhá Josefa! Coração palpitando. Medo. Ninguém ao redor, chiça! E a casa de Nha Josefa mais perto. Cada vez mais perto. Já vejo a porta da cozinhóla. Hoje o César não me esperou, o desgraçado, mas ele me para! Figa cónhota berdolega espanha figa cónhota berdolega espanha! Quem é o vulto preto no corredor da casa? Será ela, meu Deus? Ave Maria cheia de cheia de graça… Rezo em silêncio para espantar o medo. E a lembrança das histórias de ontem à tardinha na soleira da porta, que justo agora teimam em alfinetar-me o juízo, os olhos vidrados daquele anjo de Bia de Silvestra, vocês viram? Coitadinho, apenas um mês e cinco dias! Eu não quero botar falso em ninguém, mas… Olha a boca, comadre!, coitado é esteira e saco de larau. Agora ele está no regaço de Virgem Maria! Ah!, qual estória, o que é verdade tem de ser dito então vocês não viram como ficou o cabelo daquela filha de Tanha de Lombo de Pico? Bastou ela passar a mão na cabeça da pobrezinha e… E aquela luz que, ‘Ntône Rôbôc viu no outro dia de madrugada entrando pela janela da casa, ahhhann?! Bando de b’jenerentas, o que ele viu foi a luz de grog máfe que ele anda entornando goela abaixo hora sim hora não! A mim, Gregória de Nhô Piduca, ela não mete medo (e o facão riscando a pedra de molar em faíscas de raiva e revolta...)
Era sempre assim, quando passava pela casa de Nhá Josefa, a caminho da escola. Sempre esta angústia e este medo, que só terminava quando dobrava a curva à frente de Nhá Maria d’Antónia, já em Marrador. A pequena asa [sic, mas deduzimos tratar-se não da asa, asa da bruxa pelo simples fato de poder voar através da sua arte, mas sim casa, a casa onde; trata-se de um erro de digitação], coberta de palha-tinguinha, com uma casinha ao lado, ficava mesmo em cima do caminho a alguns metros no topo de um pequeno promontório ali na Boca de patinhas, perfilando-se entre as mangueiras da encosta como sentinela.
Morríamos de medo do olhar de Nhá Josefa, a quem as pessoas diziam ser uma das mais tenebrosas e insaciáveis bruxas daquelas redondezas (Manél de Jóna Chica, entre um grogue e outro, ter visto o rabo de Nhá Josefa entrando pela pequena janela do sobrado, num dia de madrugada quando ia a caminho trapiche de Jôn d’Canda, e que só escapou de ser comido vivo porque sacou rapidamente uma mãozada de sal que traz sempre no bolso!). Mamãe brigava feio comigo por acreditar nessas leviandades. Que ela era uma mulher de bem, que ninguém tinha o direito de levantar essas calúnias, que essas coisas de bruxa não existiam, etc. etc. Uma vez até levei umas varadas quando recebeu queixume de que eu tinha fugido em correria desastrada de Nhá Josefa, como se ela fosse gongon (na verdade ela me tinha chamado, para levar um recado à minha mãe – como vim a saber depois – mas o pavor levantou-me os pés do chão e voei ribeira abaixo, parando apenas quando cheguei à esquina da casa de Jóna Tosa em fajã de Trás…)
Anos depois regressei à ilha, homem feito e já sem medo de bruxas. A Electra já tinha acabado com as bruxas e gongons no fundo dos caboucos, e, numa das caminhadas pelo valecom omeu irmão mais velho, fui encontrar Nhá Josefa descansando à sombra das mangueiras debaixo da sua casa. Parei ali com ela alguns minutos numa alegre cavaqueira, ela espantando-se pelo menino cabeçudo que sempre por ela passava a correr (ah se adivinhasse porquê!!) e agora tinha virado homem louvar-a-Deus! Fui caminhando depois pela mesma estrada empoeirada da minha adolescência, sorrindo em silêncio… (Dias, 2006, p. 29)
Essa estória de Nhá Josefa fala dos atos de bruxaria no Vale da Ribeira da Torre, Santo Antão, atos que segundo Manzanares (s.d., p. 43) têm um “carácter fantástico e medonho”. E isso se explica,
…pelo facto de serem resultantes da crença e prática relacionadas com supostos poderes mágicos de algumas pessoas com o objectivo de alterar o curso normal dos acontecimentos. Cientificamente ainda que alguns historiadores se inclinem para considerar a bruxaria como fragmento de uma cultura matriarcal, a maioria prefere interpretá-la como um fenómeno de indiscutível oposição ao cristianismo. O facto é que são inegáveis a relação da bruxaria com os movimentos esotéricos, ocultistas e satânicos. Tanto a Bíblia como autores cristãos de todas as épocas, indicam o seu caracter maléfico em todas e em cada uma das suas manifestações, bem como da sua impossibilidade de conciliação com o cristianismo. (Manzanares, s.d., p. 43)
Partindo desta impossibilidade de conciliação entre a bruxaria e o cristianismo (catolicismo), religião oficial do colonizador, podemos, então, afirmar que esta crendice na bruxaria e que no passado se apoderou do povo de Santo Antão, é uma tradição que nós herdamos dos escravos vindos da África e que foram trazidos entre os séculos XVIII-XIX pelos senhores, diretamente da ilha de Santiago, para trabalharem nos campos em Santo Antão, por exemplo nas terras de regadio e sequeiro da Ribeira da Torre, onde, como veio residir Nhá Josefa.
A bruxaria, fetiséria, como escreveu Tomé Varela da Silva (1998) era “uma crença com bastante peso na sociedade cabo-verdiana, décadas atrás. Hoje, já quase ninguém acredita na realidade da sua existência, que antes era tida como um facto quase indiscutível por muita gente” (p. 158).
Minucia ainda o autor supramencionado vários espetos importantes desta crendice, que pela variante do crioulo por ele empregue em seu texto citado em baixo, deduzimos que são aspetos da bruxaria típicos da tradição de Santiago, mas válidos, igualmente, de Santo Antão à Maio e de Fogo à Brava. E nos aventurando, sem medo dos ‘fetiseru’ ou ‘fetisera’, "figa cónhota berdolega" passamos a esclarecer o seguinte:
… era-se ‘fetiseru’ ou ‘fetisera’ (homem ou mulher) independentemente da vontade própria. Pois acreditava-se que se nascia ‘fetiseru’ ou ‘fetisera’, por uma espécie de hereditariedade. Filho ou filha de pai ou mãe ‘fetiseru’ tinha uma tend~encia (que se diria natural) para ser também ‘fetiseru’. Em casos em que isso não acontecia, tornava-se necessário uma proteção especial ao recém-nascido por parte do progenitor não ‘fetiseru’. Caso contrário, o ódio do progenitor ‘fetiseru’ sobre a criança seria certamente fatal para ela: seria ‘comida’ por ele. Acreditava-se que se podia dar o caso de um casal de ‘fetiserus’. O casal seria muito harmonioso (ao contrário do que aconteceria quando um elemento do casal não fosse ‘fetiseru’) e muito dificilmente teria um filho não ‘fetiseru’.
‘Comer’ uma criança ou uma pessoa qualquer (por um ‘fetiseru’) consistia numa habilidade própria de ‘fetiserus’ em reter (‘pega’) o espírito dessa pessoa fora dela. Como se crê que o espírito é vida, o facto de separá-lo do corpo acabaria por, em mais ou menos tempo, provocar a morte da pessoa visada. Então, o próprio corpo da pessoa serviria de alguma forma de manjar do ‘fetiseru’.
Para proteger uma criança contra um ‘fetiseru’, de vários estratagemas lançavam mãos: cruzes desenhadas com ‘leite’ de babosa na testa, no peito, nas costas, nas palmas das mãos, nas plantas dos pés, lavar a criança com urina fermentada (de preferência urina da mãe)[iii]; pôr dependurado ao pescoço da criança dentes de alho; esfregar a criança com alho; prender a criança determinados amuletos, etc. Tudo coisas que o ‘fetiseru’ detestaria. O adulto protegia-se do ‘fetiseru’ bebendo um puco de ‘leite’ de babosa ou esconjurando sempre que visse em situações ou circunstâncias suspeitas.
A pessoa julgada de ‘fetiseru’ vivia quase sempre socialmente marginalizada, numa espécie de ostracismo individual ou familiar, com o espírito, quase sempre em sobressalto e numa contínua angústia. Com efeito, sempre que se tivesse uma febre nas redondezas era passível de ser acusada com estando na origem daquele mal-estar; se uma criança adoece de repente e morre, el seria tida como causadora dessa desgraça. […]
Os ‘fetiserus’ seriam portadores de ‘rabu’ (um sinal físico)[iv] que normalmente se localizava em partes do corpo menos expostas (de preferência em três sítios: junto do ânus – seria o mais habitual; na cabeça – entre os cabelos; e num dos olhos – sinal lembrando unha de gato). Podia tomar diversas formas (de gato, de boi, de carro, de qualquer outra coisa possível ou imaginária) com o fito de espantar pessoas, sobretudo a noite. Acreditava-se que quando uma pessoa se espanta, o seu espírito deixa-lhe o corpo por momentos. Seria então uma oportunidade excelente o ‘fetiseru’ lhe reter o espírito, que ficaria sem voltar ao corpo se para o ‘fetiseru’ não viesse a ‘largá-lo’, provocando assim a morte da pessoa em causa.
Acreditava-se que, desde o começo da noite até à meia-noite, os ‘fetiserus’ podiam entrar em ação ordinária. Para isso, depois, de besuntarem por três vezes seguidas os respectivos sovacos e virilha com um óleo próprio que costumavam guardar religiosamente em ‘bolis’(cabaças), dizendo: […] por cima de todas as árvores, excetuando […] canaviais[v] […], os seus espíritos deixariam os respectivos corpos (que ficariam na cama aparentemente inanimados), não sem antes serem convenientemente destripados e guardados em sítios onde não podiam apanhar terra.
Os espíritos dos ‘fetiserus’, ao deixarem, o corpo, esvoaçariam como passarinhos e poderiam ser vistos por qualquer como sinais luminosos deslocando-se no ar, de um lado para outro. Mas, mal se pousassem, as luzes desapareceriam. Se nesse esvoaçar fossem apupados, voltariam em direcção à pessoa que os apupou com a intenção de lhes fazer mal. Se a pessoa que os apupou entrasse para dentro de casa, o espírito apupado pousar-se-ia sobre a casa e faria uma série de desacatos para punir a pessoa. Se entretanto, a pessoa tiver dentro de casa tiver dentro de casa um caule de canavial [‘Karis] aguçado e ao espetar (de baixo para cima) no teto da casa enquanto o ‘fetiseru’ lá se encontrar, este ficaria preso pelo tempo que o canavial se mantiver espetado no tecto. Seria uma das formas de ‘pegar’ (prender) o ‘fetiseru’ que, com o amanhecer, chamaria a si o corpo e se transformaria na verdadeira pessoa que era, revelando assim publicamente sua verdadeira identidade. Mesmo assim só desceria da casa quando o espeto fosse retirado do tecto. […]
Para certificar de que alguém era ‘fetiseru’, acreditava-se que se poderia socorrer de alguns estratagemas: a) dar de beber a esse alguém e ao receber de volta o recipiente em que bebeu, emborcá-lo (a pessoa só iria daí, quando o recipiente fosse desemborcado); b) esse alguém entrou em casa de outrem para cavaquear ou por qualquer outra razão: se o dono da casa pega numa agulha de coser e espeta-a no batente da porta para onde aquela terá de sair, essa pessoa, não deixa a casa enquanto não se retirar a agulha do batente. também, se acreditava em determinadas orações para o efeito. Neste caso, o ‘fetiseru’ só é ‘solto’, quando a pessoa que o ‘pegou’ [amarrou] ‘desfazer’ (rezar do fim para o princípio) a oração. (Silva, 1998, 158-161)
A propósito de alguns dos aspetos que nutrem esta crendice na ilha de Santo Antão, segundo Rocha (1990, p. 104), existe um que permitia as pessoas acreditar nos “poderes mágicos existentes em certas famílias, como as feiticeiras, as bruxas e os fadários. As feiticeiras traziam atrás um rabo e quando voavam a noite emitiam luzes”. Como diz o próprio autor,
Reuniam-se geralmente às sextas-feiras no campo, Curral da Ruça, e tinham que ir buscar o Miguel Benedito, célebre curandeiro, para lhes cortar o rabo, arremessando um compasso –, o compasso de nhô Miguel Benedito[vi].
As feiticeiras mais perigosas, dizia-se, possuíam sete artes e quando qualquer chegasse a nossa casa e pedisse água, ficava amarrada se a gente emborcasse o copo por onde tinha bebido. Só se ia embora quando a gente desemborcasse o copo. (Rocha, 1990, p. 104)
Fernandes (1998) diz que em Santo
Antão, mais concretamente na zona de Corda, as bruxas “levantam vôo,
fop-fop-fop! Rumo ao Curral da Russa, uma região montanhosa, situada a Oeste da
Ilha” (p. 20). Sobre a crendice no bruxedo, suas peripécias, incidentes, sequelas
e desmistificações da parte da população nas várias localidades desta ilha, pela
pena dessa autora, ficamos a saber muita coisa. Diz ela:
Antes
de as bruxas saírem em direção aos destinos, são chamadas pelo ‘pontador’,
depois de se verificar se todas elas estão presentes.
Esvoaçando
de covoada em covoada, bordeira em bordeira, as bruxas chegam mesmo a atingir
grandes altitudes. Nunca são distinguidas fisicamente, pois na altura do
levantamento do vôo, desprendem-se em forma de ‘pé de vente’, deixando contudo,
rastos de lume, aqui e acolá.
Os
rabos das bruxas, sempre que possível, são extraídos por Nhô Pidrin, homem
sobejamente conhecido nessas andanças de ‘corta-rabo’. O rabo, nunca é decepado
ou arrancado violentamente, já que está diretamente ligado ao ânus, através de
um tubo que se desenrodilha facilmente.
Existe
também o ‘compasso’, que vai determinar a posição do referido rabo. Com esta
operação a bruxa nunca mais volta a voar e os distúrbios que possa provocar,
são de pouca monta.
Porém,
é importante estar-se alerta, aquando do nascimento das crianças, rigorosamente
sete dias e noites, evitando-se que elas sejam arrebatadas pelas bruxas, logo à
nascença. Estas bruxas que vão avisando, não comerem filhos de pobreza!
Nhanha,
a minha avó, conta que as bruxas ainda para ludibriarem as pessoas, encarnam-se
em ratos, bestas, gatos, centopeias e baratas.
Se se desconfiar desse acto, deve-se logo ‘estamborar’ esses ‘bitche’, antes que danifiquem vidas humanas. […]
Já
Tuda diz […] antigamente, se uma pessoa tivesse ‘fama’, o bruxo era forçado
pelas pessoas, a queimar a rebeca cujo arco fora confecionado co tripa de gato
preto, poi é lá que está toda a ‘desonestraçon’.
Hoje,
a informação que nos é dada por quem de direito, é a de que, essas faíscas tão
propaladas pela população, pressupõe-se, só são sentidas nos cemitérios,
normalmente pela calada da noite, quando os corpos entram em estado de
putrefacção, provocando as tais faíscas (focus-fatuo).
Nha
Pedrinha que ouvia com atenção, todas estas advertenças acrescenta: afinal,
deixei eu já de compreender Apesar de que a esta nossa ilha, Santo Antão, é
rica em bitche, como canelinha, bejon, capatona, encantado, mossôngue e montes
de bruxas! Já a agora, por falar em encantado, necessário se tornaria
esclarecer, a essa gente, da existência ou não de toda essa ‘bejuneria’, porque
do contrário, ter-se-á de pagar pelo que não se deve.
Isabel
era uma mulher trabalhadora; costurava dia e noite; remendava, fiava, por
encomenda e fazia todo o trabalho de casa, nunca dispondo de uma horinha, para
repousar.
E
quantas vezes ia, noite fora, buscar água à fonte? Uma vez, ou outra, na época
das chuvas, aproveitava para tomar um rápido banho na água das ribeiras, em
pleno silêncio da noite!
A
certa altura Isabel fora surpreendida por um aglomerado de pessoas que a
atacam, tratando-se de bruxa rabiosa, pois uma mulherzinha afastada de casa a
essa hora avançada da noite, claro que fizera contrato com o diabo! Ao
regressar a casa, Isabel fora cercada, espezinhada, enquanto lá ia fazendo
convencer as pessoas da sua inocência, perante uma acusação brutal e estúpida.
A
vizinhança, gente que a conhecia, tentou defendê-la, afirmando ser uma mera
confusão, posto que a senhora sempre fora respeitada por todos, bem conhecida
no meio, sendo uma boa dona de casa; decente, enfim, arrumadinha! Longe de ser
uma bruxa, já que esta é suja e feia!
Todavia,
ninguém se convenceu, pelo contrário, fizeram-lhe ‘figas’, esconjurando-a.
Bastas vezes agarram-na, conduzindo-a à porta da Igreja, onde era espancada com
o fim de a libertar do espírito embruxado. O padre revolteou-se contra essa
conflituosa situação e tentou impor a sua autoridade na qualidade de pároco da
freguesia, chamando a consciência dos cristãos, do grande mal que provocavam e
instalavam no local.
Pouco
tempo depois, Isabel é hospitalizada. Sucumbe e é conduzida à casinha térrea,
mas ossada. A iluminar o caixão, quatro banquetas confeccionadas de tronco de
árvore, suportam as lamparinas a petróleo.
Conduzido
corpo à Igreja, foi a homilia; os responsos, enquanto o padre pedia que se
rezasse um Padre Nosso, para salvação dessa alma. Mas o silêncio e a revolta
fundem-se! Vai daí, Nho Atanázio, fora a de, imediatamente, pôr as bruxas a
dançar, pois enquanto dançavam, não devastavam.
Nhô
Atanázio que trepava uma laranjeira, empunhava o violino e as bruxas,
euforicamente, pulavam e faziam roda cá em baixo, dançando mazurka, valsa,
contra-dança, até cansarem.
Muitas
pessoas questionavam a razão da invasão de tantos feiticeiros em Santo Antão! É
que essas rochas altaneiras, conseguem albergar dezenas e dezenas de bruxas,
dando vazão à sua arte acrobática, largando ‘fatcha de lume’, por todas as
bandas.
Quando
crianças, Nha Felisberta nos contava que verdade, verdadinha, nunca existiam
bruxas. Mas o problema é que para apanhar lenha na merada , semear milho e
feijão, coroar, sachar, mondar; guardar corvos e pardais; apanhar cagarras,
terão de andar noite inteira, transportando fatcha de lume, ao menos para não
caírem nos ‘pedôrom’.
Mesmo
assim as pessoas podiam ser agredidas à catana, quando saíam à casa de um dia
de jornada, para sustento da casa. Foi o caso do hoem de Nha Felisberta que
chegara a casa com o corpo ‘espancadeado’.
Pobre
do homem que se foi esmirrando; ‘corpo esmurce’, até morrer!
Quanto a Nho Junzin Curandér, ao ser chamado de urgência, é tão somente para nos ajudar a defender dos vizinhos, que nos trazem sempre ódio e malquerênça. De imediato ele invoca o nosso anjo da guarda, enquanto consulta o 'lumiador', que é um instrumento em vidro e cristal. Este, em contacto com o sol, permite ao curandeiro descobrir algo à volta da aura do sujeito em questão, verificando-se desta maneira, se a pessoa está limpa de corpo e alma. Recomenda ainda o curandeiro, que se misture alecrim, eucalipto, contra-peçonha e gotas do líquido de babosa, a um pequeno feixe de cabelo de cinta; este depois de reduzido a pó, tomar duas colheres de chá dessa substância de manhã e à noite. Também que se enterre à porta da casa, uma garrafa de xarope , confeccionado com vinho quinado, arruda, alho, sementes de mostarda; tomar três vezes ao dia (colher grande). (Fernandes, 1998, pp. 20-24)
Determina um tal ditado popular espanhol que “eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”. E se existem, figa konhóta berdoléga espanha, figa konhóta berdoléga espanha, figa konhóta berdoléga espanha! Nôs ê morgôs, bzôt n’den puder k’nôs… pê frent ê k’te kémin, n’óra de Deus!
Após esses esconjuras de afugentar bruxas, temos a dizer que há bons anos atrás, acreditavam em Santo Antão, que deveras existiam bruxas nas diversas localidades da ilha. Quando nascia uma criança, sete dias depois, os pais junto dos familiares e vizinhos tinham de fazer a guarda-kabésa, para a proteger das bruxas, criaturas estranhas que, em suas “ações ordinárias”, tendem “comer”, de acordo com “habilidades próprias”, o recém-nascido, retendo (‘pegando’) o seu espírito fora dele, separando-o do corpo, o que acabaria por provocar a sua morte, numa fase muito precoce da sua vida.
Sabe-se que, do nascimento ao sétimo dia probatório da vida do neófito, ele enfrenta as mais diversas dificuldades de sobrevivência, por isso tem de se lhe prestar muitos cuidados, uma vez que estando “nu, desamparado e frágil” (vulnerável), susceptivelmente, podia ser alvo da cobiça de uma bruxa, que voava a noite, desde “Curral da Ruça”, em direção à casa dos pais para o “pegar” dormindo, e assim o poder “experimentar” ou “comer” conforma fosse o caso. Daí que, todo o cuidado era pouco para o defender. A bruxa podia se transformar em animais, por exemplo, gatos, cães, insetos, etc., sendo a sua presença difícil de ser detetada. Fazia todos os seus intentos e usava várias artimanhas com o objetivo de “comer” o recém-nascido na noite do sexto para o sétimo dia após a sua vinda ao mundo.
A festa de guarda-kabésa acontecia na noite do sexto para o sétimo dia após o nascimento de uma criança. Tinha lugar em casa dos pais de cada neófito. Pessoas amigas e vizinhança eram convidadas para tomarem parte no acontecimento.
Mais do que nunca, nesse dia, o neófito tinha de estar sob uma contínua e apertada vigilância da parte da mãe desde o cair da noite, numa tentativa zelosa de impedir a aproximação de uma bruxa (Nhá Josefa, por exemplo, na Ribeira da Torre!) que, decerto, tentaria “comer-lhe” o menino ou a menina. Para tornar mais remota essa possibilidade, punha-se debaixo do travesseiro da cama tesouras abertas, e várias agulhas espetadas no colchão; debaixo da cama, facas, machados, garrafas partidas.
Tomé Varela da Silva (1998) autor supramencionado acrescenta ainda que “Ao redor da cama em que repousa o recém-nascido, algumas vizinhas cavaqueando. Na sala, muita animação e conversa, jogos de carta, comes e bebes” (p. 162). Conforme esse autor,
A certa altura, tudo é interrompido para dar lugar ao […] fazer cristão […] da criança em guarda, numa espécie, numa espécie de prevenção a uma possível morte […] de criança não batizada. Serve de padre qualquer catequista (ou outra pessoa d bem) presente que, derramando água natural sobre a cabeça da criança invoca o nome desta e acrescenta: “eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Para padrinhos desse batismo são previamente indicados pelos pais da criança duas pessoas, um homem e uma mulher. No fim da cerimónia do batismo, a animação continua até, à meia noite, altura em que os “fetiserus” [as bruxas] se recohem às suas casas e, consequentemente, a criança de correr o risco de ser “comida”. Nessa altura, as pessoas presentes regressam às suas casas para o merecido descanso a que não são alheios o recém-nascido e os pais deste. (Silva, 1998, pp. 162-163)
De notar que toda a animação na casa da festa de guarda-kabésa, até a meia noite visava criar um clima que afugentasse e desencorajasse qualquer intento orquestrado pela bruxa querendo se aproximar do recém nascido.
O batismo administrado nessas circunstâncias só tem validade, no caso de a criança vir a morrer, antes de ser levada à igreja para a ser de novo batizada e, desta vez, por quem de direito.
Com base nas informações disponíveis em uma monografia que orientamos aquando da realização de um curso de formação de professores e delimitada ao estudo do tema festa de guarda-kabésa na Ribeira Grande, Santo Antão (Medina, 2003), informamos que nesta localidade o ritual de proteção do recém-nascido iniciava-se bem antes do sexto para o sétimo dia. Praticamente começava desde o primeiro dia da vinda do neófito para mundo, porque em muitos casos, coincidia que a bruxa era a própria parteira, o que facilitava, em grande medida, o seu acesso ao neófito, porque ela é que, segundo a tradição tinha de a banhar nas primeiras semanas de vida. E como parteira, conhecia quase todos os cantos da cas dos pais do menino ou menina. Para evitar que a bruxa “comesse” o recém nascido, havia todo um trabalho feito, geralmente, por pessoas experientes, mais concretamente as avós (maternas ou paternos), que faziam de tudo para protege-lo, desde a utilização de plantas protetoras dos males causados pela bruxa (contra bruxa, mostarda, etc.) à utilização de roupas femininas interiores e muito conspurcadas que, a volta do seu corpo, eram colocados. Como garante o próprio autor dessa monografia,
Todos os cuidados eram redobrados na noite do sétimo dia, pois nela definia-se a continuidade da vida da criança ou senão era comida pelas bruxas. A preferência das bruxas era maior se tratasse de uma criança do sexo masculino, pois elas tinham um “sebo” que facilitava as bruxas nas suas artes de voo. Assim, toda a família, os vizinhos e amigos da família trabalhavam em conjunto no sentido de envidar os esforços para poderem salvar a criança do perigoso ataque das bruxas ao sétimo dia após o nascimento.
Neste âmbito cavavam-se alguns buracos em redor da casa onde eram colocadas pequenas porções de sal, mostarda e enxofre misturados. Também uma parte desses produtos era arremessada para cima da casa em forma cruzada. Também no seu interior era geralmente feito o mesmo. Em cima da cama do recém-nascido eram colocadas facas, tesouras, e outros objectos de metal principalmente o aço, sabendo que os mesmos impediam as bruxas de chegarem perto da criança. Ela era envolvida em roupas “intimas” da mãe, e sobretudo escolhia-se as peças mais sujas. A própria urina era armazenada em objectos aproximadamente dois dias antes do sétimo dia e colocada por baixo da cama ou ainda espalhada à volta da casa. Segundo consta, as bruxas gostam mais das crianças que estão bem limpas e bem cheirosas.
Durante essa noite elas eram afugentadas variadíssimas vezes recorrendo ao seguinte esconjuro: “figa canhota berdolega, mar de Espanha e bô tem oi mau. Bê pe pregue d’mar vermei...”. Este era feito como forma de afastar a criança dos proeminentes perigos. (Medina, 2003, pp. 29-30)
O
rigor no ‘guarda cabeça’, deve ser tanto mais redobrado, quando a criança nasce
‘beteóde’. Esta nasce envolvida numa sarraia e logo que cortado o umbigo, a parteira retira-a do invólucro. Distingue-se perfeitamente do menino normal,
pois o beteóde, mal sai da sarraia, momentaneamente trepa a parede do quarto
onde nasceu, seguindo rumo ao tecto; porém nunca se deve impedí-lo desse
trajecto, não vá o menino atrapalhar-se e ficar ‘nocente’ por toda a vida.
(Fernandes, 1998, p. 21)
Essa noite de 'guarda cabeça' também tinha um outro interesse. Com o objetivo de manter as pessoas acordadas e de vigília, era organizado uma festa com todos os elementos da família e amigos. Era preciso fazer muito barulho de forma a afugentar as bruxas e manter acordado os participantes nesse ritual. Para isso nada melhor do que degustar comes e bebes, fazer tocatinas e lançar-se ao baile até o romper do dia.
Todas essas cerimónias e divertimentos eram necessários para a defesa do recém-nascido, pois segundo a crença popular se não os fizessem, em muitos casos, a sua vida não passaria do sétimo dia. Daí a urgente necessidade de protegê-lo nessa fase crucial da sua existência.
Bibliografias e Referências
Barros, A. (1961). África. Cabo Verde: o que se viu, o que se disse, o que se cismou, de 1952 para cá. Lisboa: António Barros.
Cabot, L.; Cowan, T. (1992). O poder da bruxa: a terra, a lua e o caminho mágico feminino. Rio de Janeiro: Campus.
Carvalho, M. A. S. (2004). O Objecto e a Escrita. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do LIvro.
Dias, P. (2006). Gentes das Ilhas: 61 “estórias” enquanto sono não vinha. Praia: CV Telecom.
Fernandes, M. P. R. M. (1998). Os contos da Paula. Mindelo: Gráfica do Mindelo.
Manzanares, C. V. (s.d.). Dicionário de Seitas e Ocultismo. Coimbra: Verbo Divino.
Medina, J. N. L. (2003). A Festa de Guarda-cabeça na Ribeira Grande – uma contribuição para o seu estudo. Praia: ISE.
Morin, E. (2003). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand.
Pesavento, S. J. (s.d.). História & História Cultural. Acedido online em: ttps://www.passeidireto.com/arquivo/6688920/pesavento-sandra-jatahy-historia--historia-cultural - Data de acesso: 24-03-2016.
Rocha, A. (1990). Subsídios para a História da Ilha de Santo Antão (1462/1983). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.
Silva, T. V. (1988). «Crenças e religiões». In: Descoberta das Ilhas de Cabo Verde. AAVV. Parte II / Tema 3. Praia: Arquivo Histórico Nacional (Cabo Verde). pp. 153-175.
Notas de fim
[i] Expressões em Latim, que traduziremos, para a língua portuguesa em momento oportuno, na altura da abordagem da festa do miron (Divino Espírito Santo). Esta foi uma forma cingela que encontramos para homenagear Nho Bintin pelos seus Apontamentos manuscritos sobre a Novena do Divino Espírito Santo, um espólio documental gentilmente facultado pelo malogrado filho (Manuel Bintin). Nho Bintin foi um dos promotores da festa do miron na ilha (Vila Ribeira Grande, Tarrafal, Capela de São Miguel, Irmandade da Costa Leste. Morreram, mas ficou connosco a obra. E mais adiante falaremos dela, na altura da abordagem dessa festa.
[ii] Como narrou Paulino Dias (2006, p. 29), autor supramencionado, em sua estória de Nhá Josefa, a propósito da visualização desse sinal físico (rabu da bruxa) “Manél de Jóna Chica, entre um grogue e outro, ter visto o rabo de Nhá Josefa entrando pela pequena janela do sobrado, num dia de madrugada quando ia a caminho trapiche de Jôn d’Canda, e que só escapou de ser comido vivo porque sacou rapidamente uma mãozada de sal que traz sempre no bolso!”
[iii] Kem tem sê m’nin gurdim… dél bonhe n’urina tchôk, oh séb, oh séb, oh séb! Basta visionar o vídeo da peça "Rabo da Bruxa" do grupo teatral Juventude em Marcha para perceber disso. E com essa cantiga de embalar a criança e ao mesmo tempo esconjuro, as bruxas fugiam como o “diabo a correr da cruz”.
[iv] Não é só Ribeira da Torre que tem a má fama de local de bruxas. Existem outros locais muito mais famosos, por exemplo: Chã das Furnas, Corda, Garça… Ribeira de Janela, a mais conhecida, através da nossa música. basta ouvir a morna «Papá Juquin Paris», cantada e eternizada pela nossa ‘Diva dos pés descalços’, Cesária Évora, cujas origens são de Santo Antão. Soubemos, há bem pouco tempo que a Mãe dela era da Ribeira da Torre, zona ‘Varginha’, o que nos orgulha muito.
[v] Plantações de caniço, como se diz na nossa ilha ‘merada de cana de cariço’. Com esta planta daninha à agricultura, fazia-se a cestaria e esteiraria (artesanato), mas também os principais amuletos contra a bruxaria: ‘slomon’ (para lhes afugentar no dia da festa de ‘guarda-kabésa’) e ‘compóss’ (para lhes decepar o rabo quando estiverem voando).
[vi] Pela biografia de Agostinho Rocha, crê-se que este curandeiro tenha existido no vale da Ribeira Grande, Santo Antão, onde ele é natural e viveu a sua infância ouvido estórias da boca dos mais antigos.